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A espetacularização da tragédia

COLUNA

MUSEU DE TUDO

por Theo G. Alves

É terça-feira, 4 de agosto, e há pouco mais de seis horas uma imensa explosão ocorreu em Beirute, capital do Líbano. Até agora ainda não há provas concretas do que causou a explosão nem uma dimensão real do número de vítimas fatais e dos estragos decorrentes do que até então é chamado de “acidente”.


Essa introdução é necessária para dizer que escrevo esta crônica ainda sob a sombra frenética que se abateu sobre as pessoas que acompanham com interesse as notícias de todo o mundo, especialmente conectadas pela internet.


Pouco mais de 15 minutos após a explosão, vídeos e fotografias do momento em que ocorre a principal explosão já percorriam o planeta. As imagens de uma torre de fumaça e do cogumelo que se formou logo depois, assim como da onda potente que pôde ser vista enquanto se aproximava violentamente dos muitos celulares que registravam o momento, causavam impacto tão grande quanto o da explosão.


Alguns momentos depois, a quantidade e variedade de ângulos e de efeitos da explosão inundava as redes sociais antes mesmo de chegarem às redes de notícias. Os vídeos mostravam a devastação imediata em movimento e som da explosão ocorrida no porto de Beirute. Logo após as pessoas serem atingidas pelo impacto, os celulares voavam pelas casas assim como os que os seguravam. Muitas dessas imagens foram transmitidas ao vivo por seus autores, muitos deles até aquele momento jamais haviam pensado em si como operadores de imagens assumindo um papel jornalístico de proporções internacionais.


Obviamente há um imenso choque em testemunhar eventos como esse. Mas eu também pude me chocar com o testemunho de outra coisa: o espetáculo dessa tragédia. Em vários dos grupos de Whatsapp de que participo essas imagens começaram a aparecer numa velocidade e violência só comparáveis às da explosão. Quase todos os comentários davam conta da magnitude da explosão, da profundidade dos registros feitos como alguém que fotografasse um furacão por dentro, da imersão que as imagens do ponto de vista do espectador causavam. Em um dos grupos alguém chegou a comentar sobre “a beleza” da explosão, como se a qualidade estética daquela cena superasse intencionalmente a ficção hollywoodiana.


Nos primeiros momentos, em apenas um desses grupos foram mencionadas as possíveis mortes, o sofrimento de uma cidade que viveu intensamente horrores de longas guerras ou ainda possíveis causas e consequências para algo tão grandioso.


Até agora, por volta das 19h desta terça-feira, os números oficiais dão conta de 73 mortes e mais de três mil pessoas feridas. É provável que esses números subam largamente nas próximas horas ou dias. Os canais de notícias mostram insistentemente uma variedade de imagens da explosão, do entorno, de feridos em locais próximos, de escombros, de carros destruídos, de homens e mulheres ensanguentados, de corpos borrados sobre as calçadas...


Esse também é o assunto em redes sociais como Twitter e Facebook e nos grupos de Whatsapp. A abordagem em quase todos varia, agora, entre o espetáculo e as teorias da conspiração em torno do fato. A comoção que as pessoas apresentam é cada vez mais parecida com uma máscara para esconder a fetichização da violência ou a espetacularização da tragédia, mas uma máscara como estas que usamos hoje em dia, em que os olhos continuam à mostra e que revelam muito mais do que escondem.


A rapidez da transmissão das imagens, sua violência, a ausência de um filtro ou de uma organização narrativa, a imagem espetacular da tragédia e a conduta ética diante de acontecimentos como este requentam uma pauta constante sobre nosso comportamento nos tempos atuais e sobre nossa conduta diante dos assombros que a tecnologia nos permite registrar.


A imagem dos acontecimentos faz de sua narrativa maior que o próprio evento? As imagens enquanto símbolos das tragédias (a lembrar das cenas do comboio de mortos na Itália ou os caixões e a escavadeira num cemitério em Manaus por causa dos mortos pela Covid 19, um menino sírio morto em uma praia da Turquia, por exemplo) nos aproximam ou nos distanciam da precisão dos acontecimentos? Que responsabilidades éticas e sociais cumprimos ou deixamos de cumprir nestas ocasiões?


Depois de nos condoermos pelas vítimas no Líbano, é preciso que pensemos as respostas para perguntas como estas, cada vez mais necessárias num momento em que todo mundo é um repórter, um fotógrafo, um câmera ou uma testemunha do mundo ao nosso redor.

 

Theo Alves é escritor e fotógrafo, publicou vários livros de contos e poesias e atualmente é colunista do periódico Potiguar Notícias (RN). Como fotógrafo, dedica-se em especial à fotografia documental e de rua. Também ministra aulas de fotografia digital com aparelhos celulares em projetos de extensão do IFRN, onde é servidor.

A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.

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