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A floresta perdeu seu silêncio

COLUNA

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O xamã yanomami Davi Kopenawa disse que por causa dos brancos “a floresta perdeu seu silêncio”. A frase está no belíssimo livro “A Queda do Céu”, em que o etnólogo francês Bruce Albert registrou aproximadamente dez anos de conversas com o líder indígena, publicado pela Companhia das Letras. Kopenawa diz ainda que “palavras demais nos vêm da cidade” e descreve como a aproximação dos brancos modificou a maneira de agir e pensar de muitos yanomami, especialmente os mais jovens.


Para os yanomami, perder o silêncio resulta algo como perder a capacidade de existir em harmonia com a floresta, que é o mundo. E essa incapacidade parece fadar as tribos que viveram por tanto tempo afastadas dos colonizadores e minar a essência de um habitante da floresta.


Não sei em que ponto da história as civilizações do lado branco do mundo perderam sua capacidade de silêncio: talvez desde as invenções renascentistas, que se aprofundaram durante a revolução industrial, sustentada por máquinas de criar barulho. Talvez antes disso, quando as pessoas eram subjugadas como escravos ou objetos de diversão para civilizações mais antigas.


Hoje, é certo que aprimoramos nossas máquinas de aniquilar silêncios. Tudo ao nosso redor é barulho: os carros, as máquinas, as sirenes distantes, o barulho branco dos eletrodomésticos, a música, a poesia, nossas tvs e computadores, as conversas, o trabalho, nossos celulares e seus inúmeros aplicativos de mensagens instantâneas e as redes sociais, que não apenas nos roubam o silêncio, mas também a capacidade de estarmos sozinhos. Às vezes é dessa solidão e silêncio que precisamos para poder estar em paz com os barulhos que nos permitem viver melhor.


Há uma entrevista concedida por outro pensador indígena, Ailton Krenak, em que – antes de começá-la – ele avista um pássaro no céu e comenta “aquele pássaro atravessou todo esse caminho e não deixou nenhuma pegada”. Através dessa imagem, Krenak diz que os brancos pisam com muita força na terra, deixam muitas pegadas e fazem muito barulho. A pegada de que Ailton Krenak fala são as palavras a que Davi Kopenawa se refere. Criamos tanto barulho que somos incapazes de viver no mundo em silêncio, de maneira harmoniosa.


Por isso, mais do que pelo risco da Covid 19, nos vemos ameaçados no mundo inteiro pela solidão e silêncio da quarentena. É o tédio quem nos ameaça porque nos tornamos incapazes de silêncio. Negacionistas de nossas identidades e sentimentos, ligamos a tv para não pensar. Ouvimos música alta enquanto arrumamos a casa porque não queremos estar ali a ouvir o que pensamos de nós mesmos e do mundo enquanto pendulamos a vassoura. Falamos o tempo inteiro através dos aplicativos com quem não está ao nosso lado, quase uma conversa de fantasmas. E falamos cada vez mais alto, mais demoradamente. Encavalamos uma chamada em outra e, se não nos atendem, endereçamos para mais alguém o nosso chamado. Só não nos permitimos estar em silêncio. São as miragens silenciosas que construímos para nós mesmos: frágeis arquiteturas de papel, como uma espécie de fast food de silêncio, que chega a se parecer com um, mas que não o é de fato.


Com frequência tento parar e ouvir o silêncio: é a espera que precede a palavra, como estas que escrevo agora; é o momento em que todos os cães e guardas noturnos estão em silêncio ao redor de todo o mundo; a exata fração de tempo antes de haver o barulho que comporá o poema ou que será destroçado por uma nota aguda correndo da boca de um trompete mágico no meio da noite. É só nesse silêncio que chego a ver, mesmo que de longe, a floresta voltando para casa e a presença real de toda a felicidade possível, como se em comunhão com a vida antes da imensa explosão.

 

Theo Alves é escritor e fotógrafo, publicou vários livros de contos e poesias e atualmente é colunista do periódico Potiguar Notícias (RN). Como fotógrafo, dedica-se em especial à fotografia documental e de rua. Também ministra aulas de fotografia digital com aparelhos celulares em projetos de extensão do IFRN, onde é servidor.

A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.





porque não enterramos o cão?

theo g. alves

Contos - 2020


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