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A Vontade da Sombra

CONTO | por Ednézer von Ritter


A grande bola incandescente mergulha no negrume da muralha, um bando de gaivotas cruza o céu para a esquerda. Na floresta aumentam os sussurros perfazendo uma sinfonia e feixes de luz costuram uma nebulosidade amena emoldurando a presença crócea. Nesse ínterim, dá-se algo sinuoso e sombrio. A criatura reivindica a legenda de: “O Senhor das Sombras”, tão logo marca o solo, chama o primeiro que surge a sua frente. É um pássaro, um corvo, e de rápido lhe lança uma pergunta: Quem é a criatura mais indicada a lhe apresentar as verdades e os mistérios daquele mundo? O corvo nem precisou pensar, buscou a resposta, num bater de asas, e disse: "Procure a serpente. Ela possivelmente tem as respostas que lhe interessam.”

O Senhor das Sombras fez como orientou o corvo e procurou nas profundezas de um vale sombrio. Seguindo o caminho das mutucas e cruzando por muitas teias de aranha para chegar ao paradeiro da serpente. Quando a encontrou foi logo disparando suas pretensões: “Sou o Senhor das Sombras e vim para imperar com o véu das trevas. Quem são aqueles a quem que terei de me impor?”. A serpente se mantinha nas alturas, escondida por entre densas folhagens e trepadeiras. Ainda oculta, respondeu:

− Olha que maravilha! Alguém com tão grande pretensão! Não sei se será tão difícil conquistar seu intento num mundo tão manso, mas, se queres alcançar tal ambição, deverá investir seu aliciante projeto, tendo como alvos os filhos do Senhor da Luz.

− Quem são esses filhos?

− São os homens, os pré-anjos! Filhos do Senhor da Luz, como já disse.

− O que preciso para conquistá-los?

A serpente, que ainda se mantinha suspensa em galho alto, desceu em torvelinho. Surgiu diante daquela criatura, penetrou-a com seus olhos e disse:

− Conquistá-los em definitivo é algo impossível ao que me parece, o que está ao alcance é retardá-los da senda.

− Como devo proceder?

− Desnorteá-los e oferecer-lhes um belo labirinto.

− Desnorteá-los?

− Sim. Vá até os homens e diga a cada um – que ele é especial. Um ser único que vale por dois. Assim, ele vai sentir-se diferenciado e estará apto a renhir na garantia de sua superioridade perante o outro.

− E isso é o bastante?

− Não. Diga ainda, para que ame as coisas mais do que as pessoas. Assim, o homem que escutá-lo jamais estará satisfeito, terá uma fome insaciável. Jamais vai aceitar possuir menos do que o outro. Essas duas proezas serão o suficiente para retardá-los! Desse modo, o senhor será um obstáculo incrível!

− Pelo visto, terei muito trabalho em espalhar esse ideal para toda humanidade.

− Bem, encontrará resistência numa porção, aqueles brilhantes e firmes como o diamante. No entanto, na semeadura encontrará solo fértil para os grandes rebanhos. E lhe digo mais, onde o vento não espalhar essa semente, o calor da prata haverá de incutir com mais força os códigos desse aprazimento

− De que maneira poderei retribuí-la por esse préstimo?

– Ora! Deixe disso!

– Até onde sei tudo tem seu preço!

− Hum! Evidentemente! Faça o seguinte: dê-me um pouco de sua fama, será tão grande, tal qual a fama do Senhor da Luz, e eu me sentirei eternamente grata!

− E por que prefere se associar a mim do que ao Senhor da Luz? Não lhe cobiça essa condição de pré-anjo?

− Trevas que me livrem! Sou tão agarrada a esse mundo que prefiro jamais subir às alturas, se não àquelas que possa desfrutar os frutos da terra somente.

O Senhor das Sombras partiu em direção ao primeiro homem semeando seu ideal. A serpente se recolheu, e dessa vez nas entranhas, entre troncos e raízes. Tempo depois, surgiu o Senhor da Luz e soprou uma densa fumaça quente e branca no buraco da cova, fazendo a serpente emergir rapidamente para a superfície. O Senhor da Luz então indagou:

− Não querendo perturbar. O que andou fazendo a serpente nos últimos dias?

– Eu? Nada!

– Lealdade é o que peço nas respostas! Nada mesmo?

– Ei! Evidentemente que alguma coisa sempre acontece, o caldo sucoso que escorre pelo canto da boca, por exemplo. Abismos! Tantas são as delícias que por vezes até me confundo com os sabores!

– Esteve recebendo visitas?

− Sabe! Eu estive junto a um novo Senhor! Muito elegante por sinal! Não vai o senhor me dizer que a elegância não tem seu valor?

– Tudo bem, não serei de todo inexorável. Afinal, a formosura exterior serve de resíduo para o que importa realmente, que é o luzir da substância.

– Ai! O Senhor fala-me sempre de coisas retumbantes, mas te confesso, elas não me convencem. Por isso, sigo a mim mesma.

– Veja só! A serpente acabou de dizer algo que beira a esplendoroso. No entanto, o argumento de não render-se por carência de convencimento, não lhe garante uma coroa de louros. Motivo esse, que a razão não pode nunca andar sozinha, pois não se sustenta sem a verdade. E agora diga, qual assunto foi tratado nesse encontro?

− A verdade é que revelei os caminhos possíveis aos homens!

− Apresentou os ideais da perdição? Retardando o caminho dos pré-anjos?!

− Vida louca essa! Pensei que o senhor, ao recolher o sol, nada presenciara?

− Informo a você que quando não vejo em douro, vejo em argento e, se necessário, vejo pelos poros.

− Desculpe! Mas se o Senhor bem sabe aquilo que já fiz, e tal já está feito. Por que das indagações?

− Às vezes não basta olhar é necessário debruçar-se, não é mesmo? Além do mais, de sua capacidade de desviar não me restava dúvida, o que me restava saber, e agora não resta mais, era se a mentira já lhe servia de ferramenta. − Concluiu o Senhor da Luz.

− Ei! Tenho que admitir, agora tenho um novo Senhor para seguir!

− A serpente seguirá aquilo que lhe prouver! Ainda assim eu serei o único Senhor!

− Vamos! Diga-me: e quanto ao Senhor das Sombras?

– Imagino que não tenha ainda percebido que eu sou a verdade e a verdade é uma só. Tenho o poder do princípio e do fim.

– Dimensiono que seria um confronto fantástico, entre essas duas forças?

– Absurdo! Tal coisa que você aventa é a síntese do Ser que não É! Quanto mais minha matéria luminosa se ergue, mais essa coisa some!

– Estou gostando dessa brincadeira de síntese. Dê uma síntese de nós, digo: eu, o senhor e seus filhos?

– Repete a insistência na verbalização! Lá vai então - ainda que eu possua muitas manifestações, posso me descrever como um não Ser que É;

– Avante!

– Luz dos homens é Um Ser em construção consigo mesmo.

– Ôrra!

– Agora vamos à serpente: Uma hermafrodita que nada gera! Satisfeita?

– Luz do abismo, essa foi de arrasar! Sinceramente não me vejo saciada! Ainda que sua verbalização me traga arrepios e êxtase! Entretanto, queria mesmo era que o Senhor dissesse essas palavras todas ao senhor da Sombra. Oh! Isso seria delirante!

– Redundâncias! Bem, direi em outras palavras: Não tem como me dirigir a algo que não é uma pessoa e nem uma força? Tal coisa não passa de um vício, de uma fraqueza.

– Então vejamos. Se o Senhor da Sombra é uma fraqueza, faça-me entender porque seus filhos são subjugados por ele?

− Simplesmente por que a fraqueza e o vício são como larvas, na dependência de um corpo, nesse caso a ignorância e a ilusão.

– Passa! Então me diga, se o senhor é a força e o outro a fraqueza, que, aliás, tanto despreza, por que não livra seus filhos de uma vez?

− Lhe digo que não tenho como desprezar o que não existe por si próprio. Quando a humanidade já está salva, tendo ela o maior tesouro que é a liberdade.

− Alto lá! Liberdade? Deu-lhes o sofrimento da subida inglória?

− Num ciclo, eis a grande jornada. O amor sem liberdade é incompleto, por isso o Pai dá ao filho o maior presente - O direito de fazer-se herói por suas próprias mãos, lutar contra sua própria armadura, para que a luz penetre em seu coração.

− Diga, o Senhor vai me punir?

Ecoou um silêncio, depois disso, o Senhor da Luz foi lentamente abrindo um sorriso que terminou em espasmos de risadas que ecoavam pelo vale. Com isso se aproximaram muitas criaturas, algumas acharam igualmente divertido, outras cautelosas, somente espiavam atrás de pedras e troncos. A serpente ficou perplexa e disse:

− Credo! Pare com isso! Nunca vi o Senhor rir desse jeito!

− E por que eu deveria?

− Nossa! O senhor parece rir como se fosse uma gralha!

− As coisas todas foram feitas por mim, logo eu fiz a gralha. E se a gralha foi feita por mim, é direito apresentar alguma natureza dela não é mesmo?

− Socorro! Todos esperam do Senhor uma sobriedade!

− Te digo que nem tudo que parece sóbrio é sóbrio, e nem tudo que parece intemperante é intemperante.

− Repudio! Droga! O Senhor está me deixando confuso!

− Eis que a serpente pode saber tudo sobre o mundo, mas o mundo vai além do mundo.

− Vai nessa! A verdade é que me sinto satisfeita pelos códigos que domino!

− A sua razão não me surpreende. Seu repertório de códigos é apreciável! Mas, ainda assim, são códigos estáticos! Faltam-lhe os códigos voláteis.

− Sério! Já não é o bastante uma barca de códigos?

− Ora, não despreze a beleza de moto perpétuo. A polaridade cria o pêndulo e o pêndulo faz o relógio perfeito!

− Pena! Quem sabe um dia me será permitida a chave de tais arcanos?

– As fontes hieráticas estão para aqueles que têm leveza.

– Calma aí! Se não posso alcançar por mim mesma, posso tentar me aproximar com bom artifício dos guardiões? Não é mesmo?

– Evidentemente você é presumível como seus movimentos. Se esgueira facilmente para qualquer dos lados, mas ainda assim, se mantém alinhada na escravidão de si mesma.

– Ah! Me aliei a curiosidade e a outras sedes, com isso, fui coroada com os muitos saberes e posses!

– Declaro que teu saber morre na casca! Ou melhor, se perde igualzinha a sua pele, descartada nas paredes das fendas. É uma criatura que acredita ser onze, por isso, nunca há de chegar ao doze, tampouco ao treze. Pois, jamais passou da condição de um dez ilusório.

− Acredita mesmo que não poderei vencer os gigantes?

− Unicamente vence os gigantes quem vence a si mesmo! Quem morde a própria calda cultiva seus limites!

Ganhando distância, o Senhor da Luz, mostrava que aquele momento chegava ao fim, enquanto a serpente buscava, em tom mais alto, um pouco mais de atenção.

− Uhu! Então o senhor não vai me punir?

− Se eu fosse sua consciência, puniria sim!

– Tá! Vou te dizer que não me dobro a consciência. Para dizer melhor, nem sei o que é isso!

– Aí está sua punição por outra via!

− Por último, só me diga: o senhor sente-se violado pelo surgimento do Senhor das Sombras, vendo seu designo sendo delongado?

– É função da luz amalgamar, ao contrário da sombra que é separar. Imagino que a serpente já contemplou as águas que descem das montanhas.

– Raios! Qual a criatura não presenciou tais burburinhos e roncos?

– Acredito que até os arbustos, ainda que ilhados, receberam pela brisa os queixumes dessas águas comprimidas pela brutalidade das paredes.

– Na direção do caminho estreito, o senhor quer me levar?

– Guardo a você e a toda e qualquer criatura. Um único e natural caminho!

– Ué? Mas eu sou especial!

– Suavizadas, assim serão todas as águas que murmuram. Elas serão recebidas pelas águas mansas e juntas tornar-se-ão emissárias para o grande recipiente, dele as nuvens serão feitas! E, assim é!

Tentando ganhar mais atenção, a serpente chamava repetidamente pelo Senhor da Luz. A luminosidade ia sumindo...

– Atenção! Ei! Ei! Vai me deixar falando sozinha?

– A serpente sozinha? Que ironia? Tens uma multiplicidade dentro de sua própria mente!

O Senhor da Luz silenciou. O som da floresta entre assovios e farfalhar das folhas trouxe toda uma plêiade de estrelas novas. A serpente aguardava seu novo senhor. Depois disto, novos tempos, outros recônditos – onde os pirilampos não nascem, as mariposas não se precipitam e as cigarras não cantam. A aurora da noite é reverenciada pelo pio da coruja e sua polidez.

 


Ednézer von Ritter é dramaturgo de origem e atua no mercado como escritor e roteirista desde 1992.


A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.

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