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Certo o contrário

Atualizado: 4 de jun. de 2020


Eram quase nove horas da noite e Augusto ainda não havia chegado. Jorge aguardava o amigo sentado numa mesa de canto de um bar no centro da cidade. Pensou que aguardaria mais cinco minutos e iria embora. Foi então que Augusto despontou na porta do bar. Alegria, risadas, abraços, apertões, socos leves, uma leve, mas percebia euforia de palavras, enfim, era o encontro de dois amigos da adolescência e que não se viam há muitos anos. Um acaso, poderia se dizer do destino, terem se esbarrado no Cartório de Títulos, na mesma hora da tarde e no mesmo dia, demoraram-se um pouco a reconhecerem-se, e logo veio o reconhecimento. Como Jorge tinha horário marcado no Fórum, decidiram se encontrar depois das vinte horas naquele bar enfrente ao Cartório.

Para que se entendam os fatos, um breve resumo das características de cada um deve ser considerado. Na adolescência Jorge era considerado um homem bonito, alto, moreno, que encantava todas as meninas, ou melhor, pegava todas as meninas. Alguns diriam: “sempre chove na horta do Jorge”. Era galanteador, tinha papo, dançava bem, ria alto, e nem se preocupava muito com os estudos. Augusto era o oposto, nem feio e nem bonito, diria-se: passável, tímido e retraído, mas era estudioso. Nunca o viam com meninas, não conseguia dançar, suas conversas geralmente eram monossilábicas, outros diriam: era apagado. Se os diferentes se atraem, pode ser. Ocorre que Jorge e Augusto eram amigos, frequentavam a mesma escola, tinham os mesmos amigos e os assuntos de jovens que os unia. Ao final do Ensino Médio, não sabiam o que iriam fazer, Augusto queria fazer Eletrônica e inscreveu-se num curso técnico. Jorge ficou um tempo parado, fez cursinho e passou no vestibular para fazer faculdade de Direito, para tentar endireitar-se.

No princípio ainda se falavam, por e-mail, ou se encontraram algumas vezes. O tempo foi passando e eles foram se afastando, como acontece com a maioria dos amigos. O encontro de hoje era um marco na história de vida desses dois amigos. Mal conseguiam acreditar que depois de tanto tempo, reencontraram-se e, mais que depressa, deveriam colocar o papo em dia. Quem ia começar? Por onde começariam a contar sobre suas vidas? O que de mais importante teria acontecido? O que mudou? O que deixamos para trás? Jorge, como sempre o mais falador, começou contando que era casado, e mostrou a aliança de ouro grossa no dedo. Contou que na faculdade conheceu Ana Maria, linda, caloura de Direito e que muito ajudou Jorge no princípio. A amizade virou namoro, o namoro virou amor e Jorge se viu perdidamente apaixonado. Ana Maria era a mulher de sua vida, aquela pela qual sempre esperou. Namoraram e noivaram, mas só casaram depois de formados. Abriram um pequeno escritório de advocacia e em dois anos, estabelecidos e com certa estabilidade financeira, tiveram o primeiro filho. Dois anos depois o segundo filho e o terceiro veio sem planejamento, resultado de um final de semana romântico na praia. O escritório ia bem, crescendo. A família era maravilhosa, tinha uma esposa perfeita e o casamento tinha sido a melhor escolha de sua vida. Por mais que a virilidade e tentação em outras mulheres o provocassem, jamais havia traído sua esposa. Augusto mal podia acreditar que o pegador foi pego, e tinha até família. Riu muito e alto, só podia ser mentira, uma falsa ideia ou só queria impressionar. Não, era a mais pura verdade, nem Jorge mesmo acreditava, lembrando sua adolescência diante do amigo. Quem diria que um dia tomaria jeito! São as surpresas da vida ou oportunidades que não deixamos passar.

Riram novamente, e riram muito, lembrando as peripécias do passado, das tentativas frustradas de levantar o ânimo de Augusto, o apático. Augusto mais escutava do que falava, ainda nos monossílabos, ou quase isso. Até que Jorge perguntou-lhe se não tinha nada pra contar, pois já havia descrito toda a sua vida nos últimos quinze anos. Augusto disse que não valia a pena, que nada de mais tinha acontecido em sua vida e que deixasse pra lá. Jorge insistiu, queria saber, queria ter mais conversa e aproveitar mais o tempo com o amigo. Era um homem casado, pai de família e não podia se demorar muito. Augusto disse na lata, sem gaguejar, que queria se matar. Primeiro Jorge riu e, diante do olhar parado do amigo, conteve o riso. O amigo não podia estar falando sério, nada justifica uma atitude dessas, tem muito tempo pra viver ainda. Mas o que aconteceu para que essa ideia lhe passasse pela cabeça?

Augusto suspirou e resolveu desenrolar o verbo. Fazia tempo que não via Jorge, nada mais sabia sobre sua vida ou o que acontecera nesse tempo de afastamento. Nada tinha a perder e poderia colocar pra fora o que lhe engasgava na garganta. Augusto foi fazer o curso técnico de Eletrônica, no meio do curso engravidou a irmã de um colega e foi obrigado a se casar com ela. A nova vida de casado e com filho pequeno acabou desnorteando-o. Não conseguia dar conta dos estudos, tinha de trabalhar para sustentar a família, acabou largando o curso e foi trabalhar como pedreiro. Começou a beber e passar pouquíssimo tempo em casa com a família. Estava infeliz e assim, buscando por felicidade, esteve em outras camas, com outras mulheres, até que engravidou a esposa de seu colega de trabalho. Perdeu o trabalho e a primeira esposa, juntou-se com a mulher de seu segundo filho. Também não foi feliz, demitiu-se do novo emprego e despediu-se da segunda esposa, ia viver a vida que nunca vivera. Conseguiu um trabalho de mestre de obras, e sentiu que agora a vida tomaria rumo. Mas a bebida, as mulheres e as diversões continuavam a desnorteá-lo. Arranjou uma terceira mulher, a Marina, que parecia ser tudo o que sempre sonhara, nos primeiros anos, foi maravilhoso, tiveram dois filhos e a vida estava boa, mas o desejo ainda o atormentava, queria viver mais. Traiu, traiu e traiu inúmeras vezes, tanto que uma de suas amantes engravidou, porém, Augusto não assumiu, e sim, sumiu. O casamento com Marina continuava e as traições permaneciam. Um dia conheceu a Isabel, mulher mais madura, independente e que só queria se divertir. E assim iniciaram um relacionamento sem compromisso. Já que Isabel não queria casar, era mais fácil manter a vida dupla. Marina não sabia de Isabel e Isabel não sabia de Marina. Ele sempre dava um jeito de atender as duas, ou de despistar as duas e ainda ter outros casos isolados. Anos se passaram, e Isabel, sem querer, engravidara e mesmo sendo uma mulher mais moderna, quis ter o filho, e a partir disso começou a mudar. Queria ter uma família, o filho já estava a caminho. Só que Augusto não queria deixar Marina, era seu porto seguro, a quem não devia explicações e que tudo aceitava. Isabel queria mais, e Augusto queria menos. E sem perceber Augusto viu-se numa encruzilhada. Qual caminho seguir? Que lado deve seguir viagem? Qual a melhor solução?

Enquanto a mentira se sustentou, Augusto permanecia ansioso, até que a verdade veio à tona. Impressionante como a verdade pode tardar, mas um dia chega e, às vezes, vem a galope. Isabel descobriu que Augusto era casado e que tinha filhos, além de outros filhos com outras mulheres, sem contar a lista enorme de amantes, casos, bebedeiras e outras safadezas. Isabel pôs a boca no trombone e saiu à forra. Cantou para qualquer um e todos que quisessem ouvir que Augusto não valia nada, ou tanto quanto uma nota de três reais. Marina ficou sabendo, as outras mulheres (as mães dos outros filhos) e até os filhos todos, uma vergonha! Ou seja, o castelo de areia, sem reboco e sem tijolos tinha vindo abaixo. Todas as verdades foram ditas, todos os pecados expostos e a dor da mediocridade imperavam. Enfim, fora abandonado pelas mulheres, pelos filhos e pelo empregador, pois se descobriu que pegava a mulher do patrão. Estava sozinho e por isso, ou melhor, diante de tudo isso, queria se matar.

Jorge que ouvia tudo de boca semiaberta, nem piscava os olhos ou respirava fraquinho. Mal podia acreditar nessa historia toda, o amigo só pode estar brincando. Não era brincadeira. Tudo verdade. Augusto quando desabrochou para a vida, não soube semear, regar ou cuidar de seu jardim. Assim sendo, não houve jardim, tampouco flores, só uma terra seca, sem vida, onde nem as ervas daninhas queriam se instalar. Jorge condoeu-se, e tentou animar o amigo dizendo-lhe que para tudo havia uma saída, ou outro caminho, ou ainda, outra possibilidade. Por fim a própria vida era uma atitude covarde, de quem não assume os próprios erros ou escolhas, e que seria mais fácil dar cabo a vida do que encara-la de frente.

Os dois calaram-se por algum tempo, a cerveja esquentou nos copos a espera de ser consumida, já não faria o efeito necessário, de esquecimento. Nada de esquecer, a ordem é lembrar, pensou Jorge, e pediu mais uma cerveja bem gelada, pois careciam molhar as gargantas e respirar um pouco mais. Jorge então perguntou a Augusto de que forma pretendia se matar. Augusto então lhe disse que precisava sumir, realmente não tinha coragem para encarar os fatos e nem vontade. As mulheres estavam atrás dele, requerendo direitos, desde pensão alimentícia, até mesmo uma decisão definitiva e permanente de alguma das mulheres. Nada disso queria tampouco, se preocupar com filhos, eles crescem, de um jeito ou de outro. E as mulheres que se virem, que resolvam seus problemas. Quando eu não estiver mais aqui, isso tudo vai passar, pelo meu passamento.

Eram quase 23 horas e Jorge começava a olhar o relógio de pulso, precisava ligar para Ana Maria, queria ir embora, mas ao mesmo tempo, queria ficar ao lado do amigo, tentando ajuda-lo e fazê-lo demover da ideia de suicídio. Ligou rapidamente para Ana Maria e em seguida, pegou no braço do amigo e disse-lhe que não o deixaria sozinho, que jamais permitiria que seu intento se realizasse, nem que fosse preciso interna-lo com camisa de força. Após alguns instantes, Augusto disse que acabara de ter uma ideia. Jorge queria saber a ideia.

Sem qualquer alteração em seu semblante, Augusto, expunha sua ideia. Fazia uns três meses, que conhecera uma mulher estrangeira na praia, ela era do Uruguai e estava visitando o litoral brasileiro. Chama-se Mirta e era separada, com filhos adultos. Lembrou-se dela agora, pois nesta tarde mesmo haviam se falado por mensagem. Ele iria para o Uruguai, atrás de Mirta, ficaria com ela lá no estrangeiro, bem longe de tudo e de todos. Ninguém saberia sua localização ou teria notícias suas, sumiria no mundo. Decidido, concluiu que era isso mesmo que iria fazer, sairia do bar e iria a rodoviária imediatamente comprar as passagens. Enquanto isso, mandaria uma mensagem para Mirta lhe aguardar, que ele a amava e estava indo em busca de seu amor. Tudo resolvido e sem mortes, feridos muitos. Jorge pasmou e incrédulo permaneceu calado, vendo o amigo agitar-se com a solução para os seus problemas. Augusto levantou-se e ansioso, apertou a mão de Jorge dizendo-lhe que ficou muito feliz em reencontra-lo, que a conversa foi ótima, agradeceu a ajuda para que encontrasse uma solução e desejou-lhe felicidades, e que valorizasse sua esposa, seus filhos e família. Que fosse firme e corajoso para manter a vida boa que tinham, que evitasse as tentações e, talvez, um dia, quem sabe, e se o destino assim quisesse, voltariam a se encontrar. Disse-lhe adeus e saiu porta afora.

Jorge pediu a conta ao garçom e pagou. Retirou o casado do encosto da cadeira e vestiu-o. Respirou fundo e ligou para Ana Maria, em quinze minutos estaria em casa e antes de desligar, disse que a amava muito. O ar da rua estava frio e ao chegar em casa, deu um beijo na esposa, afagou seus filhos que dormiam e foi ao banheiro perguntando-se se o encontro com o amigo tivera mesmo acontecido, ou se fora fruto de sua imaginação, ou simplesmente, se a imaginação do amigo o desestabilizara. E por fim, deu-se por conta, que nem mesmo um número de telefone haviam trocado.


 
Juliane Sperotto é especialista em Literatura Brasileira  pela UFRGS; graduada em Literatura e Língua Portuguesa  pela UNISINOS; escritora e uma das fundadoras e idealizadoras da revista Escape. Atualmente responde pela revisão ortográfica da revista e é uma das editoras associadas.

A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.

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