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Enterrei-me numa caixa de sapatos

Atualizado: 6 de ago. de 2020

Nunca pensei que fosse me tornar uma pessoa que não desse tanta importância às

coisas guardadas, pois tinha mania de colecionar objetos e guardar tudo como

recordação. Dia desses, eu estava pensando sobre os excessos que existem na minha

casa: roupas, móveis, calçados, comida prestes a vencer; DVDs, cartas, revistas,

fotografias... Resolvi então fazer uma limpa.

Arte de Daniel Cunha

Fiz uma viagem mental por dentro dos roupeiros, armários, balcões, prateleiras da

minha casa e visualizei uma porrada de coisas que há muito, mas muito tempo não

acesso.

E após esta viagem mental, comecei a mexer efetivamente, nas recordações. Fotos,

cartas, cartões, lembrancinhas e consegui passear por um passado doce, de alegria e

suavidade de vida. E, com os olhos fechados, até consegui me remeter àqueles

momentos novamente através das memórias. Uma viagem linda, onde vi amigos, meus

irmãos, meus pais, tios, avós queridos, pessoas que já partiram, outras que continuam

neste mundo, brinquedos inesquecíveis... Memórias lindas que nunca saíram da minha

mente e, tenho certeza, nunca sairão.

Mas logo, cheguei a um passado distante. Cronologicamente falando, não tão distante

quanto o primeiro momento desta vasculha. Mas distante porque as memórias fugiam

da minha mente como o diabo foge da cruz. Descobri então, que quase nada do que

estava guardado, me ajudava a lembrar de momentos tensos e que merecem

esquecimento. Ao contrário! Muitas aquelas coisas, aquelas imagens registradas em

papel, me faziam lembrar algo que minha memória bloqueava e que já tinha até criado

um mecanismo de proteção – não digo defesa porque hoje não preciso mais me

defender – mas de proteção contra as recordações tristes e que me fazem perder o

meu maior propósito de vida que é me manter feliz.

Resolvi então, jogar fora muitas coisas guardadas que estavam em caixas que nem

lembro de que sapatos eram quando resolvi fazer de arquivo. Tornou-se um arquivo

morto.

Surgiu uma pergunta que externei em voz alta: quem, em sã consciência guarda

alguma coisa morta em seu armário?

Existe uma recordação muito clara em minha memória das coisas que aconteceram em

minha vida. Tantas recordações tristes que eu, sequer conseguia balancear com as

boas. A balança realmente estava pendendo para o lado errado.

As caixas foram retiradas de seu lugar quentinho, cômodo e seguro, por mais de 20,

algumas de até 30 anos. E quando comecei a mexer nisso, um misto de sentimentos

aflorou. Dependendo da imagem, da carta, do papel, do som que aquilo remetia, as


emoções vinham à tona. Decidi deixar que viessem e que se manifestassem como

tinha de ser. Sorria e chorava. Mas em qualquer uma das situações, em momento

algum, eu quis voltar no tempo que elas datavam.

Muitas imagens minhas, através das fotografias chegaram às minhas mãos e vi o quão

magra fui. Via um rosto acabado. Uma pessoa sem ânimo e sem vida. Imagens que

poderiam falar por si só, dizendo pra mim, ali, no reflexo dos acontecimentos, que

estes dias seriam os mais felizes da minha vida.

Mas as imagens mentiam.

As imagens, as cartas, as letras naqueles papeis mentiam.

Enquanto decidi enterrar o que já estava morto, lembrava de tudo. Toda a minha vida,

registrada em recordações. Nada do que aquilo possa significar como memória, pode

sequer, apagar todos os anos de minha vida. Tudo ainda está arquivado dentro de

mim. Não somente na minha memória cerebral, mas também na minha memória

emocional, na memória do meu fígado, da minha pele, dos sulcos e cicatrizes, dos

cabelos esbranquiçados que surgem a cada dia. E cada suspiro que eu dava ao mexer

naquilo tudo, era um abraço que eu me dava internamente.

Havia um espelho próximo. Olhei-me. Examinei-me. Enxerguei meus olhos vermelhos.

Iguaizinhos quando eu passava as noites chorando por estar triste, deprimida. E

lembrei de um dia deste passado distante: o dia em que meu pai nos deu as primeiras

bicicletas das nossas vidas. Eram duas – uma novinha e outra usada. Duas bicicletas

para quatro filhos no maior Natal de nossas vidas. E foi neste dia, chorando, que eu

fizera uma descoberta: eu poderia chorar também de felicidade, pois até então, eu

pensava que se chorava apenas de tristeza.

E ao colocar de volta às caixas todas as imagens, cartas e artigos que me fizeram tristes

durante a vida, a fechei como se fechasse um caixão. Coloquei numa sacola para dar

um destino que seja longe de mim. E, chorando, como no dia em que ganhamos

aquelas bicicletas, eu chorei de alegria, pois estava enterrando a mulher que não

existe mais e que não quer mais conviver com coisas mortas. Nem dentro dos

armários, nem dentro de mim.


 

Cláudia Kunst

Cláudia Kunst, produtora cultural e jornalista. Produz shows, bandas e projetos há 20 anos. É quase uma workaholic e é apaixonada por música. Adora tatuagens, carros antigos e botas empoeiradas e um pouco de solitude.


A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.

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