Enterrei-me numa caixa de sapatos
Atualizado: 6 de ago. de 2020
Nunca pensei que fosse me tornar uma pessoa que não desse tanta importância às
coisas guardadas, pois tinha mania de colecionar objetos e guardar tudo como
recordação. Dia desses, eu estava pensando sobre os excessos que existem na minha
casa: roupas, móveis, calçados, comida prestes a vencer; DVDs, cartas, revistas,
fotografias... Resolvi então fazer uma limpa.

Fiz uma viagem mental por dentro dos roupeiros, armários, balcões, prateleiras da
minha casa e visualizei uma porrada de coisas que há muito, mas muito tempo não
acesso.
E após esta viagem mental, comecei a mexer efetivamente, nas recordações. Fotos,
cartas, cartões, lembrancinhas e consegui passear por um passado doce, de alegria e
suavidade de vida. E, com os olhos fechados, até consegui me remeter àqueles
momentos novamente através das memórias. Uma viagem linda, onde vi amigos, meus
irmãos, meus pais, tios, avós queridos, pessoas que já partiram, outras que continuam
neste mundo, brinquedos inesquecíveis... Memórias lindas que nunca saíram da minha
mente e, tenho certeza, nunca sairão.
Mas logo, cheguei a um passado distante. Cronologicamente falando, não tão distante
quanto o primeiro momento desta vasculha. Mas distante porque as memórias fugiam
da minha mente como o diabo foge da cruz. Descobri então, que quase nada do que
estava guardado, me ajudava a lembrar de momentos tensos e que merecem
esquecimento. Ao contrário! Muitas aquelas coisas, aquelas imagens registradas em
papel, me faziam lembrar algo que minha memória bloqueava e que já tinha até criado
um mecanismo de proteção – não digo defesa porque hoje não preciso mais me
defender – mas de proteção contra as recordações tristes e que me fazem perder o
meu maior propósito de vida que é me manter feliz.
Resolvi então, jogar fora muitas coisas guardadas que estavam em caixas que nem
lembro de que sapatos eram quando resolvi fazer de arquivo. Tornou-se um arquivo
morto.
Surgiu uma pergunta que externei em voz alta: quem, em sã consciência guarda
alguma coisa morta em seu armário?
Existe uma recordação muito clara em minha memória das coisas que aconteceram em
minha vida. Tantas recordações tristes que eu, sequer conseguia balancear com as
boas. A balança realmente estava pendendo para o lado errado.
As caixas foram retiradas de seu lugar quentinho, cômodo e seguro, por mais de 20,
algumas de até 30 anos. E quando comecei a mexer nisso, um misto de sentimentos
aflorou. Dependendo da imagem, da carta, do papel, do som que aquilo remetia, as
emoções vinham à tona. Decidi deixar que viessem e que se manifestassem como
tinha de ser. Sorria e chorava. Mas em qualquer uma das situações, em momento
algum, eu quis voltar no tempo que elas datavam.
Muitas imagens minhas, através das fotografias chegaram às minhas mãos e vi o quão
magra fui. Via um rosto acabado. Uma pessoa sem ânimo e sem vida. Imagens que
poderiam falar por si só, dizendo pra mim, ali, no reflexo dos acontecimentos, que
estes dias seriam os mais felizes da minha vida.
Mas as imagens mentiam.
As imagens, as cartas, as letras naqueles papeis mentiam.
Enquanto decidi enterrar o que já estava morto, lembrava de tudo. Toda a minha vida,
registrada em recordações. Nada do que aquilo possa significar como memória, pode
sequer, apagar todos os anos de minha vida. Tudo ainda está arquivado dentro de
mim. Não somente na minha memória cerebral, mas também na minha memória
emocional, na memória do meu fígado, da minha pele, dos sulcos e cicatrizes, dos
cabelos esbranquiçados que surgem a cada dia. E cada suspiro que eu dava ao mexer
naquilo tudo, era um abraço que eu me dava internamente.
Havia um espelho próximo. Olhei-me. Examinei-me. Enxerguei meus olhos vermelhos.
Iguaizinhos quando eu passava as noites chorando por estar triste, deprimida. E
lembrei de um dia deste passado distante: o dia em que meu pai nos deu as primeiras
bicicletas das nossas vidas. Eram duas – uma novinha e outra usada. Duas bicicletas
para quatro filhos no maior Natal de nossas vidas. E foi neste dia, chorando, que eu
fizera uma descoberta: eu poderia chorar também de felicidade, pois até então, eu
pensava que se chorava apenas de tristeza.
E ao colocar de volta às caixas todas as imagens, cartas e artigos que me fizeram tristes
durante a vida, a fechei como se fechasse um caixão. Coloquei numa sacola para dar
um destino que seja longe de mim. E, chorando, como no dia em que ganhamos
aquelas bicicletas, eu chorei de alegria, pois estava enterrando a mulher que não
existe mais e que não quer mais conviver com coisas mortas. Nem dentro dos
armários, nem dentro de mim.
Cláudia Kunst
Cláudia Kunst, produtora cultural e jornalista. Produz shows, bandas e projetos há 20 anos. É quase uma workaholic e é apaixonada por música. Adora tatuagens, carros antigos e botas empoeiradas e um pouco de solitude.
A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.