Hora de tomar o remédio
TEXTO LIVRE | EXPERIMENTOS LITERÁRIOS

“Um gole de cerveja preta direto da mão para a boca. O ventilador de teto rodopia sua hélice como helicóptero pronto a desabar sobre eles. Alguém lembra dos vietcongs & dos Yankees espetando baionetas uns nos outros? As bombas, o napalm & e a falta de juízo acabaram com as plantações de arroz. A autoestima foi pro saco. Apocalipse Now dentro da cabeça daquele homem com espírito indomável. Esse era o tema”.
Era mais ou menos 23 horas e alguma coisa. Na cama, enquanto o sono não chegava, lia o livro de Márcio Grings, A Nós, O Clube dos Descontentes.
Mas com aquela mania bem típica de quem tem Áries no zodíaco – sim, é meu ascendente –, de começar algumas coisas e não terminar... eu encho o saco de ler o livro do Grings e pego outro. Uma pilha atirada ao lado da cama. E, aleatoriamente, saquei Boêmios Errantes, de John Steinbek:
“Dois garrafões é um bocado de vinho, mesmo para dois paisanos. Espiritualmente, o garrafão pode ser graduado assim: logo abaixo do gargalo do primeiro, conversa séria e concentrada. Cinco centímetros mais abaixo, suaves e tristes recordações. Sete centímetros mais, lembranças de velhos e agradáveis amores. Dois centímetros, pensamentos de amores antigos e amargos. Fundo do primeiro garrafão, tristeza geral, esparsa. Abaixo do gargalo do segundo garrafão, desalento pecaminoso e sinistro. Dois dedos abaixo, canto de morte e ansiedade. Um polegar, qualquer canção que cada um conheça. A gradação pára aqui, pois a trilha se divide e não há certeza. Desse ponto em diante, tudo pode acontecer”.
Larguei o livro, meio sonolenta. Acho que vou dormir. Dou uma olhada no celular e já me perco em algumas fotografias do Instagram e fico acesa de novo. Olho para o lado e aquela pilha de livros me chama novamente.
“Lembro que durante a semana inteira Lamont não ficou alto, não tomou nem uma cervejinha. Tentava distraí-lo na cama, mas ele não conseguia relaxar. No meio da noite tremia todo e me acordava, e de manhã nós dois estávamos exaustos. Percebia que ele estava pensando no assunto enquanto comia seu Cap´n Crunch, seus olhos correndo de um lado para o outro pela cozinha, tentando adivinhar o que poderia sair errado. – Este sofrimento todo vale a pena? – perguntei.
– Não sei do que está se queixando. Você não precisa fazer nada.
– Não, só preciso estar com você.
Mais tarde pedimos desculpas um ao outro, mas o clima no apartamento ficou assim durante algum tempo.”
Aquilo estava ficando estranho. Ao ler este trecho do livro A Mil Por Hora, de Stewart O´Nan, realmente percebi que alguma coisa estava surgindo nas entrelinhas. Puxa vida! Depois de me inquietar novamente, não tem outro jeito. Vamos la. Fazia tempo que não pegava a Biografia de Billie Holiday, escrito por Sylvia Fol:
“Naturalmente, ela também precisa de um amante à sua altura. Jimmy Monroe é o homem ideal, o príncipe consorte de Lady Day, muito elegante em seus casacos justos. Ao redor deles gravita uma corte de novos amigos, em busca de pequenos favores, que ela satisfaz generosamente. Jantares regados a bebida, mesas fartas, noitadas alegres, cafés-concerto, aplausos, conhaque. E drogas. No final dos anos 30, para ser hip, é preciso fumar ópio”.
Jesus! Agora percebo. Uma dor no estômago me toma e uma estranheza como se meu âmago tivesse vida própria. Que coisa! Quanto mais livros eu vejo, ali ao lado, mais inquieta eu fico e penso “é melhor eu pegar algum título nacional. Noites Tropicais de Nelson Motta pode ser uma boa”:
“Uma tarde, no apartamento de Raul na Rua Figueiredo Magalhães, testemunhei uma acalorada discussão entre o gordo e o magro sobre as grandezas e misérias da cocaína e da maconha. Raul falava mal da maconha, dizendo que ela deixa as pessoas prostradas e sem vontade de nada, que a cocaína dava força e velocidade. Tim contradizia dizendo que a planta era santa, dava paz e inspiração... ... Discussão encerrada. Tim acendeu mais um e Raul esticou mais uma e quase fizeram uma música juntos”.
O sono começou a bater. Já era madrugada. Olhei para meu quarto. Aquela pilha de livros que eu não conseguira ler mais do que alguns trechos, aquela pilha de roupas para dobrar, os calçados para colocar nas prateleiras, a mesa abarrotada de cadernos e anotações... “o que tu estás fazendo? Tua vida é mais do que isto!”, pensei. E naquele exato momento, uma música tomou minha mente. “Garota eu te fale, a vida é nada fácil. Eu não quero dizer isso, mas o mundo é maior que teu quarto”... música do TNT, mas ouvia em minha mente versão com a voz de Julio Reny. Olho para o lado e está lá Julio Reny – Histórias de Amor & Morte, escrito por Cristiano Bastos:
“O insigth pra letra de ‘Não Chores Lola’ surgiu de uma maneira incrível. Eu estava dentro do ônibus indo pra casa do Diego e o refrão pintou por inteiro: ‘Não, não chores Lola/Um coração partido não é o fim’... ...Depois da aula fui ao cinema ver Christiane F., drogada e prostituída e, ali mesmo, em meio àquele junkismo todo do filme – o David Bowie interpretando ‘Station to station’ -, veio o resto da letra. No escuro do cinema, vendo aquelas cenas sórdidas, tristes e sujas fiz na cabeça mais um pedaço da letra...”
Chega! Vou dormir! “Está parecendo que querem me enviar mensagens subliminares etílicas” - pensei. “Puta que pariu” – falei em voz não muito alta, pois já era tarde. Esqueci de tomar meus remédios para a úlcera hepática.

Cláudia Kunst, produtora cultural e jornalista. Produz shows, bandas e projetos há 20 anos. É quase uma workaholic e é apaixonada por música. Adora tatuagens, carros antigos e botas empoeiradas e um pouco de solitude.
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