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Nada para recordar

Atualizado: 27 de jul. de 2021

CONTO

Ao abrir os olhos o sol forte lhe ofusca a vista. Esfrega os olhos com as mãos tentando acostumar-se à claridade. Assim que sua visão melhora percebe que está deitado e vislumbra um morro coberto de mata muito verde, vira a cabeça para a esquerda e percebe que a praia está a alguns passos de onde se encontra deitado, com água transparente e a espuma branca, com areia fininha e levemente amarelada. Vira-se novamente e, do lado direito há muitas árvores e até coqueiros. Olhando em torno, a visão é de um paraíso terrestre, quiçá, o Jardim do Éden. Tenta levantar-se para poder ver melhor toda a beleza do lugar e percebe que suas roupas estão em farrapos, rasgadas e muito sujas, também percebe que sua barba cresceu bastante, ultrapassando o pescoço. Senta-se num tronco seco e mais uma vez, admira-se com a praia, a água e o verde abundante que o circunda.

Sente sede, e percebe a boca seca. Onde será que está? Que lugar é esse? Levanta-se e caminha com certa dificuldade, está cansado, mas do quê? Não lembra. Não lembra nada, nem como foi parar naquele lugar, tampouco consegue lembrar seu nome. Caminha em direção às árvores a procura de sombra e sente a boca seca novamente. Pensou que deveria encontrar água, ou que encontraria alguém, uma pessoa, uma casa ou uma estrada. Olhou para as árvores e resolveu adentrar na floresta. Entre as árvores era mais fresco e tinha sombra. Continuava deslumbrado de quão bela era a natureza ali. Andou por alguns momentos e ainda cansado e com sede, sentou-se numa grama embaixo de uma árvore grande. Caiu no sono, talvez pelo cansaço, sede e fome, sentia-se estava fraco.

Acordou rodeado por pessoas estranhas e nuas. Percebera que eram homens pelo porte e pelos órgãos aparentes, mas todos tinham cabelos compridos e a pele de cor marrom fosco. Todos empunhavam um galho grosso, descascado e fino nas pontas, que logo apontaram para ele. Disse-lhes: — Estou com sede e sou amigo. Nada responderam. Caminharam em direção a ele com as estacas apontadas, e erguendo-o pelos braços, levantaram-no. Com um tipo de cipó amarraram suas mãos à frente de seu corpo. Estava preso, ou melhor, amarrado. Resolveu fazer tudo o que aqueles homens estranhos o indicavam fazer. E assim, começaram a andar pela floresta, num tipo de caminho entre pedras e árvores. Seguiam em fila indiana, um atrás do outro, e ele no meio deles. Resolveu fazer algumas perguntas: — Quem são vocês? — Que lugar é esse? O homem que o seguia à frente parou e tapou a boca dele com as mãos, então compreendeu que era melhor ficar calado. Depois de um tempo caminhando, não soube precisar quanto, chegaram numa espécie de caverna, um buraco na pedra, de uma enorme rocha encoberta de árvores.

Entraram na caverna e logo o colocaram num canto, sentado numa pedra fria e com o cipó amarraram-lhes os pés. Fez sinal com as mãos indicando que queria algo para beber. Os homens desviaram o olhar e adentraram na caverna até desaparecerem. Percebeu que sua vista alcançava somente até onde a luz do dia entrava na caverna, depois tudo ficava escuro, muito escuro a ponto de nada mais se enxergar. Depois de um tempo e ainda com muita sede, os homens retornaram da escuridão, acompanhados por um homem mais velho à frente. Percebeu que era mais velho pelos cabelos brancos em meio aos cabelos escuros e longos, também estava nu, tal como os outros. Esse velho parou em frente a ele e ficou olhando-o. Chegou a encará-lo. Ele teve de desviar o olhar, pois queria piscar e o velho não parava de fita-lo. Em seguida chegou outro homem carregando algumas frutas, que ele não conseguiu identificar de que tipos eram, mas avançou nelas e percebeu que eram doces e suculentas. Outro homem surgiu com uma enorme folha em forma de saco, amarrada com cipó e um pequeno furo, colocou bem próximo à boca dele e ele percebeu que era algum liquido, sorveu e descobriu que era água, fresca e quase adocicada. Todos os homens o observavam, enquanto comia as frutas e bebia da água vorazmente.

Satisfeita sua sede e sua fome, tentou forçar o cipó que lhe prendia as mãos e o velho colocou sua mão sobre as deles. Eram mãos bem grandes e com dedos compridos, com a pele levemente ressecada e algumas rugas que indicavam sua idade avançada. Resolveu ficar quieto e manter-se calmo. O ancião ainda mantinha os olhos fixos nele. Perguntou-lhe então: — Onde estou? — Quem são vocês? — Eu sou amigo e estou perdido, vocês podem me ajudar? O ancião o observou e nada falou. Com outro cipó maior, alguns homens o prenderam numa enorme pedra próxima de onde estava sentado. Acabado isso todos adentraram na escuridão da caverna novamente. Ele ficou ali sozinho. Tentou organizar as ideias, tentou lembrar-se de algo, olhou em volta e através da abertura da caverna só via árvores e muito verde. Resolveu ficar observando a natureza e o vento fresco que sentia. Com a barriga cheia adormeceu novamente. Quando acordou continuava sozinho e agora tudo estava escuro, não havia luz alguma em nenhuma parte. Continuava sentado na pedra fria e suas mãos e pés continuavam atados, mas nada mais via. Uma luz amarelada foi se aproximando lentamente, até que percebeu que era um daqueles homens que carregava um tipo de tocha, com fogo e que produzia luz. Deveria ser noite e por isso a escuridão. O homem da tocha aproximou-se e, com ele mais dois homens carregando frutas e mais água. Largaram tudo ao lado dele, e ficaram observando enquanto ele comia. Não sentia tanta fome quanto antes e nem tanta sede, comeu algumas frutas e bebeu um pouco da água. Alguns instantes depois, esses homens retornaram ao fundo da caverna até que a luz desapareceu por completo novamente. E ele ficou no escuro também. Não sabe quanto tempo observou a escuridão, tampouco tanto tempo levou para dormir e só deu-se conta quando uma claridade parecia tocar-lhe. Abriu os olhos e olhou para a abertura da caverna, amanhecia. E na mata à sua frente uma nevoa cobria as árvores, um brilho de relva molhada, e a luz do sol refletia naquele verde vivo de tal maneira que era quase uma ilusão, um quadro, uma miragem. Tudo parado, nada se movia, nem os galhos das árvores, tampouco havia vento. Uma utopia! Olhou para o interior da caverna escura, um silêncio absurdo e um frio intenso lhe percorreram a espinha. As frutas e a água que restaram da noite anterior estavam aos seus pés, mesmo com as mãos amarradas conseguiu alcançar algumas frutas e a água que tomara num gole só. Tentou esfregar as mãos, forçar o cipó para romper-se e desvencilhar-se das amarras, mas só conseguiu se machucar e continuar amarrado. Tampouco os pés conseguiu desamarrar e nem mesmo livrar-se da corda de cipó que o prendia a pedra maior. Desistira de seu intento, só lhe restava vislumbrar aquela natureza exuberante que a abertura da caverna lhe permitia ver.

Ouviu passos e mais que depressa virou sua cabeça para o interior da caverna, conforme a luz permitia percebeu que os homens estavam aproximando-se. Logo estavam diante dele munidos com seus varões pontiagudos. Um deles olhou pra ele, olhou para as frutas e repôs mais algumas, e água também. Saíram todos para a luz do dia. Ficara sozinho novamente e observava as luzes do sol mudando de lugar entre as árvores e secando a relva molhada, as horas se passavam. Sentiu um cheiro de carne assada que parecia vir de dentro da caverna, onde a escuridão permanecia imutável. Aquele cheiro fez com que salivasse e desejasse ter acesso aquele assado. Ouviu passos e que outros homens saíram da escuridão da caverna. Dessa vez, o homem mais velho trazia um pedaço de carne atravessada por um daqueles varões. Foi em direção a ele e ofereceu-lhe. Ele pegou aquela vara atravessada por carne e sentiu o cheiro da carne assada, porém, percebeu que não estava tão assada assim, ainda escorria um liquido vermelho e algumas partes ainda se encontravam cruas. Sua vontade era tanta que mordeu aquela carne que o suco escorreu pelos cantos da boca, pelo seu pescoço e por seu peito. Não se incomodou com aquilo, o cheiro era melhor que o gosto de carne mal passada, quase crua e sem tempero algum, mesmo assim comeu bastante.

Os homens que haviam saído antes chegaram com frutas e traziam várias folhas enroladas com cipó, iguais as que continham água. Entraram na caverna e foram recebidos com gritos e mãos levantadas. Alguns se batiam com os ombros, outros se esfregavam no corpo um do outro, outros se debatiam e um deles ajoelhou-se com a cabeça entre as pernas e ficou imóvel nessa posição até que a algazarra tivesse passado. O homem velho foi até o montinho de homem e pousou sua mão sobre a cabeça dele, entoou alguma coisa e ele levantou-se resignado. Todos adentraram na escuridão da caverna. Depois de algum tempo, o sol já batia do outro lado das árvores, a luz começara a diminuir e a tarde estava indo embora, para dar lugar à noite escura. Pensativo, concluiu que era um prisioneiro, só não sabia até quando, nem o porquê e tampouco como conseguiria se comunicar com aqueles homens. No dia seguinte, a mesma rotina do dia anterior. Alguns homens saíram da caverna, trouxeram-lhe frutas e água, o homem velho veio vê-lo novamente e os que haviam saído retornaram. O mesmo ritual foi realizado, gritos, empurrões, esfregões, mas nenhum deles se ajoelhou. O homem velho foi até seu prisioneiro e o desamarrou dos cipós. Achou que estaria solto. O homem velho fê-lo curvar-se, ajoelhar-se e colocar a cabeça entre as pernas, colocou-lhe a mão sobre a cabeça e entoou seu mantra. Ao levantar-se o conduziram para o interior da caverna. Conforme iam andando na escuridão, começou a perceber uma leve claridade, provindos de fachos de luz que transpassava o teto da caverna, era a luz do sol que passava entre as frestas. Mesmo assim ainda era difícil ter ideia da dimensão da caverna, do que havia ali dentro e para onde o levariam.

Chegaram a uma clareira. Nesse ponto da caverna ele pode observar o buraco no teto por onde a luz do sol entrava e em volta mais rocha. O local era úmido, o musgo preenchia boa parte da pedra em volta e o chão era de terra. No centro da clareira um tipo de fogo de chão, com pedras em volta e com troncos de árvores ainda queimando. Rapidamente alguns homens colocaram mais troncos e o fogo ardeu. Iluminando e aquecendo tudo em volta. O homem que no dia anterior ajoelhara-se diante do homem mais velho apresentou-se e fizera algumas voltas em torno daquela fogueira, gesticulando, movendo mãos, as pernas e entoou um tipo de mantra, muito parecido com aquele que o homem mais velho havia entoado. Depois de algumas voltas foi para um canto sozinho e posicionou-se de joelhos com a cabeça entre as pernas e ficou imóvel. Enquanto isso, os outros homens se aproximaram da fogueira e assim, foi possível perceber que entre eles havia algo de amoroso, um tipo de contato íntimo, entre dois ou entre três deles. Esfregavam-se uns aos outros, os rostos se tocavam e as mãos percorriam os corpos. Percebeu que alguns órgãos genitais aparentes estavam eretos e ficou pasmo com a visão. O homem mais velho observava tudo em pé próximo ao homem ajoelhado. Difícil descrever ou até impróprio nesse momento explicar o que estava acontecendo. Os homens estavam se tocando e penetrando-se, uns aos outros pelo ânus. Esse ritual durou um tempo e assim que estavam todos satisfeitos, voltaram-se para o homem ajoelhado e o homem mais velho entoando aquele mantra empalhou-o com a vara pelo ânus, um grito assombroso ecoou na caverna. Outros três homens ajudaram a segurar o ajoelhado e o carregaram para a fogueira. Assaram o homem na fogueira e o cheiro de carne assada tomada conta do ar. Assim que estava tostado, todos os homens começaram a arrancar-lhes as carnes com as mãos, destrinchar os ossos e comer aquela carne vermelha, ainda pingando sangue e crua em várias partes.

Os olhos do prisioneiro arregalaram-se. Estava apavorado e estarrecido com toda aquela cena que acabara de presenciar. Esfregava os olhos tentando fazer com que tudo aquilo desaparecesse. Quando ainda tentava se recuperar da cena horripilante, o homem mais velho foi até fitando-o, enquanto outros o amarraram novamente, os pés e as mãos, com uma corda de cipó maior junto à uma pedra próxima. Ali ficara quieto, chorando, tremendo, encolhido e suando frio. Não sabe como, mas adormeceu naquele lugar. No dia seguinte estava sozinho na clareira e ficou pensando em tudo o que vira na noite anterior. Atordoado, chegara a pensar que nada daquilo parecia ser real. Ouvira gritos ao longe e em seguida passos, os homens estavam voltando para a clareira da mesma forma que no dia anterior. Fizeram as mesmas coisas, só que desta vez quem teve de ajoelhar-se e colocar a cabeça entre as pernas era ele mesmo. Concluiu então que no dia de hoje, o empalhe e o assado seria ele mesmo. Suando frio, chorando, tremendo e desesperado começou a gritar: — Não mereço isso! — Sou diabético, tenho colesterol e frieiras. O meu pulmão estão preto de tanto fumar, por favor, não me matem e nem me comam! Quando o homem mais velho levantou seu varão para empala-lo, soltou outro grito estridente: — Me chamo Luis Paulo de Souza Lima. Sou Engenheiro Mecânico e trabalho no Polo Petroquímico do Rio de Janeiro! Fechou os olhos para evitar ver a cena que seguiria e toda a sua vida passou rapidamente na sua cabeça. Quando abriu os olhos, estava em sua cama King Size, com lençóis brancos e da enorme janela de seu quarto a claridade do sol ofuscava seus olhos.

 

Juliane Sperotto é especialista em Literatura Brasileira  pela UFRGS; graduada em Literatura e Língua Portuguesa  pela UNISINOS; escritora e uma das fundadoras e idealizadoras da revista Escape. Atualmente responde pela revisão ortográfica da revista e é uma das editoras associadas.

A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.







Confira este conto na nossa publicação online Caderno Escape #02

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