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“O que é arte pra ti?”

Sempre que me deparo com o teclado do computador a fim de esboçar as primeiras linhas de algum tema ao qual me proponho a escrever é praticamente inevitável perguntar: por onde devo começar? Talvez algum piadista de plantão venha a me dizer: é fácil, comece pelo começo! O difícil em alguns casos é identificar com certa clareza este começo, pois alguns temas não têm, necessariamente, um começo definido... Contudo, não entrarei em tal debate.

Como um dos editores associados de uma revista cultural, a Escape, me provocaram a escrever brevemente sobre o que eu entendo de Cultura e arte, logo fui tomado por um sentimento ambíguo. De um lado, como falar de um tema tão complexo em um breve relato sem ser completamente superficial? De outro lado, como ser o mais objetivo e analítico possível, de modo que meus comentários sejam úteis para quem me lê e façam justiça ao pedido que me foi solicitado.


Na verdade, para começar este texto eu preciso entender o que é Cultura. Assiste-se hoje a uma verdadeira virada cultural, que pode ser resumida como o entendimento de que a cultura é central, não porque ocupa um centro, mas porque atravessa tudo aquilo que é do social.

Desde que no século XVIII alguns intelectuais alemães passaram a chamar de Kultur a sua própria contribuição para a humanidade, a Cultura passou a ser escrita com letra maiúscula e no singular. Veio daí a diferenciação entre “alta cultura” (modelo) e “baixa cultura” (cultura dos menos cultivados). Desde então aceitou-se, de um modo geral e sem maiores questionamentos, que cultura designava o conjunto de tudo aquilo que a humanidade havia produzido de melhor — fosse em termos materiais, artísticos, filosóficos, científicos, literários etc. Nesse sentido, a Cultura foi durante muito tempo pensada como única e universal.

Ok. Como editor de uma revista cultural entendo que a cultura está disseminada em tudo aquilo que é do social. Deste modo, devemos olhar, sem descriminação, para todos os setores e identificar todos os processos criativos que atravessam a sociedade. Mas, no âmbito artístico, para definir o que ganha espaço para uma publicação na revista — como determinar o que é Arte?


Nada existe realmente a que se possa dar o nome Arte. Existem somente artistas. Outrora, eram homens que apanhavam um punhado de terra colorida e com ela modelavam toscamente as formas de um bisão na parede de uma caverna; hoje, alguns compram suas tintas e desenham cartazes para tapumes; eles faziam e fazem muitas outras coisas. Não prejudica ninguém dar o nome de arte a todas essas atividades. Desde que se conserve em mente que tal palavra pode significar coisas muito diversas, em tempos e lugares diferentes, e que Arte com A maiúsculo não existe. Na verdade, Arte com A maiúsculo passou a ser algo como um bicho-papão, como um fetiche. Podemos esmagar um artista dizendo-lhe que o que ele acaba de fazer pode ser excelente a seu modo, só que não é “Arte”. E podemos desconcertar qualquer pessoa que esteja contemplando com deleite uma tela, declarando que aquilo que ela tanto aprecia não é Arte mas uma coisa muito diferente.

Na realidade, não penso que existam quaisquer razões erradas para se gostar de uma estátua ou de uma tela. Alguém pode gostar de certa paisagem porque esta lhe recorda a terra natal ou de um retrato porque lhe lembra um amigo. Nada há de errado nisso. Todos nós, quando vemos um quadro, somos fatalmente levados a recordar mil e uma coisas que influenciam o nosso agrado ou desagrado. Na medida em que essas lembranças nos ajudam a fruir do que vemos, não temos por que nos preocupar. Só quando alguma recordação irrelevante nos torna preconceituosos, quando instintivamente voltamos as costas a um quadro magnífico de uma cena alpina porque não gostamos de praticar o alpinismo, é que devemos sondar o nosso íntimo para desvendar as razões para a aversão que estragam um prazer que, de outro modo, poderíamos ter tido. Existem razões erradas para não se gostar de uma obra de arte.

Muitas pessoas apreciam ver em quadros o que também lhes agradaria ver na realidade. Está aí uma preferência muito natural. Todos gostamos do belo exibido pela natureza e somos gratos aos artistas que o preservam em suas obras. Afinal, esses mesmos artistas não nos recriminariam pelo nosso gosto. Quando Rubens, o grande pintor flamengo, fez um desenho retratando seu filho pequeno, estava por certo orgulhoso da beleza do garoto, e queria que também o admirássemos. Mas essa propensão para admirar o tema bonito e atraente é suscetível de converter-se num obstáculo, se nos levar a rejeitar obras que representam um tema menos sedutor. O grande pintor alemão Albrecht Dürer certamente desenhou sua mãe com a mesma devoção e amor com que Rubens desenhou seu rechonchudo garoto. Seu honesto estudo da velhice desgastada por preocupações pode causar-nos um choque, fazendo-nos desviar os olhos do retrato — e, no entanto, se lutarmos contra a repulsa instintiva, podemos ser generosamente recompensados, pois o desenho de Dürer, em sua tremenda sinceridade, é uma grande obra.

Estas são as ideias que me motivam a buscar conteúdo para uma revista cultural que prestigia a produção artística. Quando a colega, e também editora da revista Escape, Cláudia Kunst pergunta para algumas pessoas em sua rede social “O que é arte pra ti?” — eu me manifesto da seguinte forma: “para mim, a arte é aquilo que é — sem nunca ter sido. É uma porta aberta sempre contemplada que, no entanto, jamais será cruzada”. O que eu quero dizer com isso é que o artista tem que pensar na obra e não no fruto que dela advém. Devemos nos tornar menores do que a nossa peça e lembrar sempre que não somos nós quem fazemos a obra, é ela que nos faz. Eu procuro pelo artista e o seu processo criativo. Busco obras que fazem pensar, que provocam o olhar. Pois, acredito que o artista desconfia do mundo tal como o conhecemos, preparando deste modo o terreno para a construção de outros mundos.

 

Daniel Cunha é publicitário e designer gráfico. Um apaixonado por imagens e cores. E, nas horas vagas, atua como ilustrador e fotógrafo.



A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.

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