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Retalhos

CRÔNICA | por Pitter Ellwanger


Mergulhar fundo é para poucos.

Mergulhar fundo em si mesmo é quase um desatino.

Eu diria que é praticamente impossível prender a respiração por muito tempo sob a superfície da própria alma. Mais do que resistência, é preciso coragem, destemor.

As entranhas são estranhas, assustam ao primeiro contato. Até por isso, sucumbimos com facilidade à irresistível tentação de espelhar (e desaprovar) no outro os nossos próprios demônios. Somos feitos de carne, ossos e desvios de conduta, por mais imperceptíveis que sejam – a maledicência é um deles. Mas maldizer não é crime (ainda), no máximo um veneno que queima a língua e provoca engasgos severos. Não raro, tem como efeito derradeiro uma terrível asfixia por falta de afetos, entre eles esse tal de amor próprio, tão decantado em verso, prosa e crimes passionais.

Viajei? Talvez.

Viajar é uma coisa que pouco faço, a não ser no mundo das letras. Desatento, desastrado, muitas vezes tropeço em verbos e reticências na tentativa de alcançar pronomes que não são meus. Aliás, que bela frase de efeito, hein? Um engodo, dirão alguns. Pode ser, mas penso que nem sempre é preciso ter sentido para fazer sentido.

O mundo de hoje é instantâneo, tipo aquele macarrão. Por vezes, leva bem menos de três minutos para fazer ruir convicções biltres e transformar certezas em tolices. A propósito, quanto tempo ainda será perdido até nos darmos conta do óbvio? Corre-se contra um tempo impassível, metódico, insípido, que passa e não volta mais. E a luta contra o tempo, se não for caso de vida ou morte, é pura perda de tempo. Somos impelidos a acelerar, a dar um passo maior que a nossa capacidade de esticar as pernas e os braços, quando na verdade deveríamos diminuir a velocidade das próprias vontades para não engolir tudo inteiro, sem mastigar.

Como já disse Oscar Wilde (1854-1900):

– Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe.

Gosto de quem diz muito sem precisar de uma crônica inteira para dizer tão pouco. Tenho a mania de rabiscar frases aleatórias, que vêm à cabeça em qualquer parte do dia, às vezes em momentos improváveis. Sempre penso que alguma caberá em algum texto futuro, por isso anoto. Admito que várias delas nunca passarão do arquivo de texto escondido no computador; permanecerão lá, no ostracismo, resignadas e obstinadas.

Procurando trazê-las à vida (e por falta de coisa melhor para dizer), resolvi dispersar parte das pontas soltas que me unem nas linhas que acabo de escrever. Tem um pouco de mim aqui, tem um pouco de alguém ali, tem muita coisa misturada. Afinal, somos feitos de retalhos, pedaços que se juntam por meio de costuras delineadas a várias mãos. Ou não.

Se isso vai servir para alguma coisa, não sei.

Mas, se você chegou até aqui, parabéns!

Porque às vezes nem eu me entendo (e aguento!).

 


Pitter Ellwanger é gaúcho, jornalista e escreve semanalmente para o Jornal Dois Irmãos.


A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.

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