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Um certo futuro

CRÔNICA

Em uma viagem de férias a uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, chamada Mariana, três jovens amigas aproveitavam para conhecerem as obras sacras de Aleijadinho, as construções históricas, as igrejas centenárias e aquele ar de interior, com gastronomia caseira, o tradicional pão de queijo e o saboroso queijo minas da Serra da Canastra. Julia, Liana e Roberta adoravam história e arte, já haviam ouvido falar daquela cidade e dos encantos que havia. Planejaram a viagem com seis meses de antecedência. Juntas programaram os roteiros, os locais mais desejados para visitarem, as quedas d’água que ouviram falar e, desejavam ver de perto a arquitetura barroca, as ruas estreitas, além de conhecer pessoas.

Assim que chegaram ao Hostel, que é um espaço coletivo e bem mais em conta do um Hotel ou Pousada, conheceram diversas pessoas, de outros Estados e até de outros Países. Todos com o mesmo objetivo: o de conhecerem a cidade, a parte histórica e as obras de Aleijadinho. O casal que administrava o Hostel era nativo da cidade e muito simpáticos com todos os hospedes, logo se tornaram uma grande família compartilhando passeios, curiosidades e até uma trilha para uma das mais belas cachoeiras da região. As três amigas estavam muito felizes, encantadas com a cidade, com o povo bastante caloroso e divertido.

Num dos cafés da manhã compartilhado no Hostel, o casal de administradores comentou que havia uma senhora bastante conhecida na cidade por seus dotes de benzedeira e ainda adivinhava o futuro, a Dona Nila. Todos ficaram curiosos, mas as três jovens amigas se interessaram mais e perguntaram onde poderiam encontrar a tal senhora. Cheias de curiosidade e animadas com a descoberta foram até o ponto de táxi, e o motorista sabia exatamente de quem as moças falavam. Disse que as levaria tranquilamente, porém era longe, e para isso a corrida seria mais cara. Negociaram com o motorista e seguiram viagem.

Depois de 45 minutos, por ruas que se afastavam da cidade e percorrendo estradas de chão batido, chegarem ao local. Perceberam que havia uma fila de pessoas aguardando o momento de serem atendidas. Mesmo que houvessem planejado outros passeios para o dia, as amigas resolveram esperar na fila para serem atendidas também. Pegaram o telefone do taxista e informaram-no que avisariam quando ele poderia retornar para busca-las. Estavam decididas e já que estavam ali, queriam mesmo conhecer a tal senhora e ouvir o que tinha a dizer, além da experiência de benzedura que estaria registrado nos seus diários de viagem e nas lembranças das ações vividas.

Enquanto aguardavam puderam observar o entorno: a estrada de chão batido era extensa e só havia essa estrada por perto, perceberam os cascalhos, a poeira que levantava e o cheiro de terra. Havia morros por todos os lados e estavam cobertos de vegetação, árvores, tanto que parecia uma floresta, um local pouco conhecido pelo homem ou que o homem ainda não havia interferido na natureza original e nativa. A única casa por perto era a da Benzedeira, era de madeira e muito simples, com um cercado de arame, amparado por galhos secos. O pátio era grande e puderam identificar árvores frutíferas, muitas flores e folhagens, e ainda uma pequena horta, com uma variedade de legumes e verduras. Puderam perceber um pequeno galinheiro afastado e uma vaca atada a uma árvore próxima do milharal. Tudo muito simples, mas bem organizado. Percebia-se o cuidado, o asseio e a beleza naquele lugar rodeado de montanhas, coberto pela vegetação e uma estreita estrada de chão que passava em frente a essa casa. Concluíram que se tratava de um pequeno sítio com aspecto bucólico, mas muito acolhedor e com tudo o que precisavam para sobreviver longe da cidade.

À medida que a fila andava adentrando o cercado, perceberam que havia um banco de madeira, ou melhor, algumas tábuas em cima de algumas pedras grandes formando dois bancos compridos. Assim as pessoas que se aproximavam da porta poderiam aguardar sentadas. Notaram também que eram as últimas da fila. As jovens eram muito comunicativas e logo, emendaram conversa com o pessoal da fila, a maioria pessoas idosas ou acompanhantes das pessoas idosas. Nessa fila souberam que Dona Nila era muito conhecida na região por tratar de vários tipos de doenças com suas bênçãos e seus chás, que colhia na hora de sua própria horta para oferecer aos visitantes. Muitos saiam com vidrinhos recheados de líquidos coloridos de dentro da casa. Descobriram também que chegaram tarde, geralmente Dona Nila recebia só até às 10h da manhã, pois já tinha certa idade e cansava-se rápido, por isso, não poderiam dar certeza que as receberia. Diante desse empasse, Julia tentou descobrir se poderiam ser atendidas e encaminhou-se à porta de entrada. Na pequena varanda foi interpelada por uma mulher de cabelos brancos, Julia pensou que era Dona Nila, mas não, era a filha de Dona Nila. Julia perguntou-lhe se poderiam ser atendidas, pois haviam chegado tarde pelo desconhecimento do horário de atendimento. Relatou que ela e as duas amigas eram de outro Estado e que estavam ali pelo que haviam ouvido falar de Dona Nila, sobre suas curas e bênçãos. Quase em suplica salientou que ela e suas amigas queriam muito conhecer Dona Nila e que esperariam o tempo que fosse preciso. A filha de Dona Nila disse-lhe para esperar na fila e que se não voltasse para lhe falar era porque seriam atendidas.

Julia voltou para a fila animada e contou às amigas que tinha esperanças de serem atendidas, acreditava no povo mineiro e sentia que a sorte estava ao lado delas. Enquanto isso, a fila andava e elas continuavam conversavam com o pessoal, descobriam mais coisas sobre as pessoas, a cidade, as trilhas, as cachoeiras e a comida que era uma referência naquela região. Sentadas no banco de madeira perceberam que faltava pouco para serem atendidas e ficaram animadas. Sentiram o cheiro de comida no ar, um aroma delicioso de comida caseira e perceberam que passava das 12h e 30 minutos e só faltavam duas pessoas antes delas. Tentavam decidir quem iria primeiro e a filha de Dona Nila surgiu na porta conversando com uma senhora que estava indo embora feliz e com um vidrinho cheio de ervas nas mãos. Ela olhou para as jovens e indicou que as três entrassem na casa. A casa era minúscula, parecia maior do lado de fora. Notaram um pequeno sofá de dois lugares, bem simples, e duas cadeiras de madeira em frente ao sofá. Nos fundos dessa peça uma mesa de madeira grande coberta com folhagens, folhas, vidros recheados e coloridos, e com bancos de madeira. Uma luz de sol iluminada uma pessoa próxima à única janela do cômodo. Não dava para perceber que tipo de pessoa era, pois a luz era tão intensa que parecia algo alado. Nas paredes de madeira várias imagens de santos, de Jesus Cristo e vários terços. A filha da Dona Nila tinha sumido por uma porta e quando retornou trazia um pedaço de madeira com três cumbucas em cima e disse às moças que precisavam comer algo, pois estavam a algum tempo esperando. Cada uma delas pegou uma cumbuca, o cheiro era agradabilíssimo, era feijão, mas não um simples feijão, um feijão tropeiro à maneira mineira e cozinhado no fogão à lenha. Elas devoraram a refeição com muito gosto e muito gratas pela gentileza. Assim que acabaram de comer a mulher as conduziu até a mesa de madeira e pediu que as três se sentassem no banco de madeira, muito parecido com aquele que havia na rua, mas os pés eram de madeira e não de pedras.

A Dona Nila levantou-se da cadeira próxima à janela e encaminhou-se para a mesa com uma cumbuca nas mãos. Puderam observar que se tratava de uma senhorinha bastante idosa, mas rija, estendeu sua cumbuca vazia à filha, que logo se retirou com uma olhadela às três amigas. A Senhorinha olhou para as jovens e disse-lhes:

— Estou muito cansada. Adoro receber as pessoas e essa é minha missão. Faço isso ha tanto tempo que nem lembro o quanto. Mas confesso que tenho andado muito cansada ultimamente. Me dá gosto ver as pessoas saírem felizes, ou me agradecerem por algo que eu tenha dito, feito ou ainda algum unguento que lhes tenha ofertado. É de coração e de bom grado minha oferta. Tenho muito gosto de ver as pessoas bem e curadas de todo o mal que possa haver no mundo. Com a benção de Nosso Senhor Jesus Cristo eu recebo cada um com muito carinho, até que chegue o dia em que estarei nas mãos do Pai.

As amigas estavam perplexas com a lucidez, a fala mansa e correta, mas firme e o brilho nos pequenos olhos de Dona Nila. Só queriam ouvi-la.

— Minha filha me disse que vocês são turistas e ouviram falar de mim, e por isso que estão aqui. Eu agradeço e me sinto honrada com sua visita. Normalmente, converso individualmente, mas como estou cansada vou atender às três juntas, tudo bem?

As três balançaram a cabeça afirmativamente. Com lentidão e certa dificuldade de locomoção, Dona Nila circundou a mesa e dirigiu-se às três jovens com um ramo de arruda nas mãos. Pediu-lhes que ficassem em pé. E perceberam que Dona Nila era bem mais baixa que elas, uma curvatura de anciã a diminuía ainda mais. Julia foi a primeira que Dona Nila pousou os olhos, pediu que se sentasse novamente e colocou sua mão na cabeça de Julia. Fechou os olhos, com o ramo de arruda circundou a cabeça e orou baixinho, que nem se ouvia a oração, apenas uma prece quase silenciosa. Pegou nas duas mãos de Julia e passou o ramo de arruda nelas, ainda de olhos fechados e orando baixinho. Esse procedimento levou alguns segundos, menos de um minuto e, logo que parou de falar olhou novamente nos olhos de Julia e a fitou por alguns instantes, fez-lhe o sinal da cruz na testa e beijou-lhe as mãos. Procedeu da mesma maneira com a Liana e com a Roberta. Nesse momento o silêncio era quebrado pelo som de passarinhos e o cheiro de feijão tropeiro que ainda pairava no ar.

Dona Nila puxou um pequeno banquinho de madeira que estava próximo e sentou-se. Olhou novamente as jovens e vagarosamente disse-lhes:

— Vocês três são muito amigas e essa amizade durará muito tempo. Percebo que há verdade e amor entre vocês três, e que podem contar uma com a outra. Isso é uma benção e vocês devem alimentar essa amizade para sempre, com respeito e bondade. São cheias de saúde e vivacidade, alçaram muitas conquistas.

Pegou as mãos de Julia e disse-lhe:

— Você terminou um namoro longo ha pouco tempo, mas não se preocupe. Vocês voltaram a estar juntos, irão casar e terão três filhos: duas meninas e um menino. Estabelecerão uma família e serão muito felizes.

Olhou para Liana e pegou-lhe as mãos:

— Você tem relacionamentos longos, prefere estar com alguém, a estar sozinha. Logo você vai encontrar aquele que ficará para sempre, mas não vai casar. Não terão filhos, mas será muito feliz mesmo assim.

Em seguida olhou para Roberta e também lhe pegou nas mãos e disse-lhe:

— Você é muito namoradeira menina! Troca de namorado como quem troca de roupas. Vai levar um tempo até que encontre aquele que decidirás dedicar seu coração. Não se preocupe, continue procurando e quando menos esperar seu amor vai te encontrar.

Dona Nila juntou as mãos como numa prece, rezou um pai nosso, benzeu as três amigas com o galho de arruda e finalizou o atendimento com a seguinte declaração:

— Vocês três são muito inteligentes. São mulheres fortes e de muita coragem. Não dependerão de homem para sobreviverem, trilharão seus próprios caminhos, serão ótimas profissionais e escreverão seus destinos em busca da felicidade.

Dizendo isso, retirou-se vagarosamente e voltou a sentar na cadeira próxima à janela com a luz do sol cobrindo-a como um manto de luz. A filha de Dona Nila adentrou no cômodo e disse às amigas que o atendimento havia acabado, e que voltassem quando quisessem. Acompanhou-as até a porta e despediu-se com um aceno. Julia ligou para o taxista e aguardaram sentadas no banco de madeira próximo à porteira do sítio. As três estavam caladas, parecendo hipnotizadas, com o pensamento longe e tentando digerir o que acabara de acontecer. Nem perceberam quanto tempo se passou e quanto tempo o taxista levou para chegar. Entraram no táxi e retornaram ao Hostel. No Hostel sentiam-se exaustas, como se um peso houvesse sobre os ombros, resolveram descansar um pouco. No quarto compartilhado com outros hospedes, havia três beliches, deitaram nas suas camas e adormeceram. Acordaram às 18h renovadas e com muita fome. Tomaram um banho e saíram para jantar num restaurante simples em frente à praça da cidade. Havia feijão tropeiro como prato principal e o escolheram. Comeram, mas não tinha o mesmo gosto daquele que comeram na casa da Dona Nila.

Três dias depois, a viagem havia acabado e tinham de voltar pra suas casas, suas famílias, suas respectivas vidas e seus estudos. O tempo passou e bem rápido. Elas se formaram na faculdade, viveram muitas aventuras e outras viagens, amizades e amores, e eram muito felizes. A amizade perdurou e ainda perdura até hoje, mesmo após vinte anos daquela viagem à cidade de Mariana.

Quando Roberta dera a luz ao seu terceiro filho, Julia e Liana foram visita-la para darem às boas vindas ao novo ser que chegava à vida. Durante a conversa, recheada de risadas, alegrias e muito carinho recordaram da viagem à Mariana e lembraram-se de Dona Nila, e suas previsões do futuro. Dona Nila acertou quase tudo, menos no que dizia respeito à vida amorosa delas:

Roberta conheceu Alexandre três anos depois da viagem e foi amor à primeira vista, namoraram por dois anos e casaram-se na igreja com direito a véu e grinalda, e festa com muitos convidados. Julia e Liana foram madrinhas. Dois anos depois do casamento nascia a primeira filha do casal, depois de seis anos a segunda filha nascia e após mais três anos nasceu o menino. Agora iriam fechar a fábrica de bebês, pois o casal já não era tão jovem, e a família estava completa. Liana é madrinha da primeira filha e Julia é madrinha da segunda filha de Roberta.

Liana teve muitos namorados até que um dia engravidou. Não foi planejado e tampouco assumiram um casamento. Decidiu ser mãe solteira, tendo a participação do pai eventualmente.

Julia teve um namoro de vai e volta por um longo tempo com Carlos. Nunca assumiram nenhum tipo de relação e tampouco tiveram filhos. Não sei se Julia e Carlos ainda se veem, mas é provável que sim, pois Julia nunca mais apareceu com outro namorado, mas está sempre falando que se encontra com Carlos vez ou outra.

Concluíram que Dona Nila se confundiu ao prever o futuro amoroso de cada uma, mas acertou que as três amigas seriam ótimas profissionais. Julia era uma excelente advogada, Liana era professora universitária com Doutorado e Roberta uma ótima dentista. Não dependiam de homem ou maridos e conseguiram realizar muitas conquistas. Tinham muita saúde e muito carinho umas pelas outras, cuidavam e preservavam a amizade que seria para sempre e duradoura. Em meio a risadas, resumiram que eram muito felizes.

 

Juliane Sperotto é especialista em Literatura Brasileira  pela UFRGS; graduada em Literatura e Língua Portuguesa  pela UNISINOS; escritora e uma das fundadoras e idealizadoras da revista Escape. Atualmente responde pela revisão ortográfica da revista e é uma das editoras associadas.

A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.

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