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...Eu vou

Atualizado: 6 de ago. de 2020

Era uma banda que estava sempre em seu toca fitas.

Era uma banda que estava sempre em seu toca fitas. Dia e noite. Quando uma banda ou uma música lhe agradava, furava os ouvidos de tanto repetir a mesma coisa. Não importava. Queria mesmo era absorver o máximo possível daquele sentimento que vinha daquelas vozes, daqueles acordes... Aquela bateria tinha um peso desmedido. E, embora nunca tivesse prestado a atenção em teclados, naquela banda, o instrumento realmente proporcionava uma atmosfera que causava um verdadeiro transe emocional.


Ela era tão louca por aquela banda que um amor platônico pelo guitarrista aflorou. Ele tinha cabelos longos, lisos, porém grossos e sedosos. Sempre que ele tocava, sua cabeça permanecia baixa por alguns minutos, mas ao finalizar o solo, subia a cabeça velozmente e seus cabelos voavam para o alto dando um movimento dançante naquelas madeixas brilhantes, ora coloridas, pela iluminação do palco, ora negros, com o apagão das luzes. Coisa linda! Envolvente! Ela ficava horas olhando para aquele corpo másculo e viril nas fotos que decoravam as paredes de seu quarto. O jeans surrado, apertado, marcava seu corpo. O cinto de couro largo, com uma fivela simbólica. Parecia algo medieval. Deus, que homem!


A cada nota que ele empunha naquela guitarra, os músculos de seus braços saltavam e ela apreciava cada milímetro daquelas veias azuis. Sua vontade é que aqueles movimentos não acabassem nunca mais, pois cada movimento parecia único e peculiar. Olhar para aquilo lhe causava excitação. Cada passo que ele dava em cima do palco, movimentava também os músculos de suas pernas malhadas e que, com aquele jeans velho e gasto, diante daquelas luzes de neon, mostrava seus contornos mais sexys. Deus, ele era tão sexy!


A imagem daquele VHS já não era tão nítida de tanto rodar. Mas a fazia ficar vidrada de qualquer forma. Aquela imagem ofuscada é que dava mais charme ao movimento. Quando ele cantava – era backing vocal, além de guitarrista – as veias de seu pescoço saltavam e a impressão era de que elas iriam estourar a qualquer momento. Ora os cabelos tapavam seu pescoço, ora ele ficava ainda mais evidente. E tudo o que ela queria, era colocar suas mãos naquelas veias saltadas para sentir o pulsar das batidas frenéticas do seu coração, compassado com o ritmo voraz daquela música.


Em quase todos os vídeos em que ele aparecia tocando, uma coisa era quase imperceptível de se ver: seus olhos. Cabeça sempre baixa. E ao subir, os mantinha fechados durante boa parte do show, sentindo cada acorde que dedilhava daquele instrumento de forma visceral.


Como uma boa fã, sabia que de que cor eles eram. Afinal, colecionava pôsteres e fotografias da banda e, em especial do guitarrista de cabelos sedosos e compridos.


Certa noite, ela pegou no sono com o toca-fitas ligado. Aquela música, embora fosse pesada, penetrava em seu inconsciente, pois o volume do aparelho precisava ser baixo devido ao horário. E em seu sonho, la estava ele. Com uma camisa preta, três botões abertos e pouco do seu peito e seu pingente de dente de lobo à mostra. As mangas da camisa estavam dobradas e não ultrapassavam o cotovelo, escondendo, assim, boa parte de seus braços tatuados. O jeans... ah o jeans... justo, surrado, viril como sempre aparecia nos clipes. O cinto com aquela fivela linda e brilhante e nos pés, um par de botas empoeiradas.


O sonho continuava e logo apareceu o palco onde aconteceria a apresentação da banda que – coisas de sonhos - não era a original. Ela vestida negro: calça justa, blusa com um pequeno decote, cinto de couro e um par de botas. Algumas tatuagens já envelhecidas, meio borradas em seu corpo. Cabelos volumosos e revoltos ludibriando a verdadeira cor deles por causa do crepúsculo daquele horário. Sentada no gramado, com o sol já se pondo, aguardando o show, alguém tropeça em suas pernas. Sentiu uma dor e olhou para o alto. Era ele, olhando para ela la de cima, com os cabelos cobrindo o rosto. Ela não deu importância, em meio à imagem borrada do sonho desconexo. Em seguida, percebeu que era ele, seu ídolo. Ela ouviu uma voz ao longe, voando para seus ouvidos recitando um chamado: “vem”.


Ela levantou-se, bateu as mãos atrás para limpar a grama que ficara solta em seus quadris largos e seguiu a voz. Era um lugar hostil, com pouca luz. Parecia um beco. Quando chegou, ele estava escorado na parede úmida e infestada de limo. Ele estendeu a mão em sua direção e disse “vem”. Ela foi se aproximando e ao chegar, notou que ele estava sem camisa e suas tatuagens de demônios à mostra. Aquele corpo nu da cintura pra cima era tão lindo. Aquele jeans surrado e o peito descoberto. Lindo e sedutor. Deus, como ele era sedutor!


A imagem foi ficando cada vez mais desconexa, embaçada. E ela sentiu então as duas mãos dele pegarem as suas e colocar lentamente em seu pescoço. Ela afastou os cabelos dele e espalmou as suas mãos deixando somente os polegares em cima das artérias de seu pescoço – sim, mesmo inconsciente, ela lembrava que aquilo era sexy demais e queria sentir aquele pulsar assim que ele verbalizasse qualquer palavra. Mas ele permanecia em silêncio e ela não conseguia sentir a vibração. Somente o compasso de seu coração. Seus olhos estavam à mostra pela primeira vez e ela podia olhar dentro deles. Eram negros e brilhantes. Ela podia sentir seu coração acelerar e manteve suas mãos em sua nuca, sem tirar os polegares de cima das jugulares. A vibração ficou ainda mais intensa, a respiração forte, como se ele fosse fazer algum movimento. Ele olhou dentro dos olhos verdes dela e espalmou as suas mãos no seu pescoço, tal qual ela fizera com ele e pôde sentir também o seu coração através das artérias que vibravam. Ele sorriu e ela pode, finalmente, sentir aquele pulsar quando ele disse “vem...”.


 

Cláudia Kunst, produtora cultural e jornalista. Produz shows, bandas e projetos há 20 anos. É quase uma workaholic e é apaixonada por música. Adora tatuagens, carros antigos e botas empoeiradas e um pouco de solitude.

A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.

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