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Quando o sol impera

Atualizado: 27 de jul. de 2021

CONTO

Card a partir da ilustração (detalhe) do artista Antonio Lopez

Três dias inteiros de chuva e após mais noite de chuva suave, mas incessante, em que o barulhinho dos pingos d’água é como música de ninar, amanhece cinza novamente. Nesse amanhecer, Daiane percebe a chuva finíssima, com aquela aparência de névoa e permeada de umidade, mas que molha mesmo assim. O dia todo permaneceu gris. Qual seria a vantagem de sair de casa? Só para molhar os calçados, as roupas e carregar guarda-chuva pra lá e pra cá. Sem contar ter de esbarrar com outras pessoas, também de guarda-chuvas, e outras sem guarda-chuvas, pingando água por onde passam. Quando lembrou que precisaria pegar ônibus para ir ao centro, Daiane resolveu pensar se haveria algo realmente urgente para resolver na rua, e decidiu que nada merecia esse trabalho todo. Qualquer demanda poderia aguardar o dia seguinte ou quando o sol voltasse a brilhar. E a previsão do tempo dizia que o sol logo voltaria.


Foi nesse momento que teve um pensamento e o desejou ferrenhamente: “seria muito melhor que todos os dias fossem ensolarados”. E tal como a previsão previra o dia seguinte amanheceu ensolarado. Um sol lindo, brilhante, iluminando tudo e a todos, tanto que quase ardiam os olhos. Daiane colocou os óculos escuros e saiu à rua. Todos pareciam mais felizes, o céu era de brigadeiro – diz-se quando não há nuvens no céu, só o azul celestial. O firmamento era de azul claro perfeito muito superior a qualquer pintura.


Nos dias seguintes também não choveu e tudo era felicidade, nada de umidade e nem de guarda-chuva debaixo dos braços. Em 15 dias ainda permanecia ensolarado, e após 30 dias sem chuva alguma Daiane continuava feliz. Passaram-se dois meses sem nenhum sinal de chuva e nem a previsão do tempo entendia. Daiane ainda estava feliz e contente, saia à rua todos os dias, com demandas ou sem demandas, só para aproveitar os dias ensolarados. Porém, as pessoas começaram a reclamar que a chuva estava fazendo falta e, preocupados ficaram os meteorologistas, alarmadas as autoridades, atentos os setores da economia, principalmente, a agroindústria. Os distribuidores de energia elétrica e de água também chamaram a atenção para a falta de chuva.


Após três meses sem chuva e sem sinal de que poderiam cair algumas gotas d’água, os rios estavam no limite e os caudalosos muito abaixo do nível mínimo de volume. O consumo de água havia diminuído, após várias campanhas publicitárias solicitando que as pessoas consumissem menos, até que começaram a ocorrer cortes, eventuais, da distribuição. Os setores da indústria, da construção civil e até o agronegócio foram convocados para essa redução de consumo também. Infelizmente, nem todos aderiram e continuavam usufruindo a água como se nunca pudesse acabar, inclusive a Daiane. Ela tinha uma vida simples, mas com certo conforto. Tinha casa, banheiro com chuveiro, um pequeno jardim e caixa d’água para abastecer a residência.


Em quatro meses sem chuva alguma e sem previsão, o racionamento atingia 80% da população. Os mais abastados, as grandes indústrias e os mais altos agricultores compravam água de fora, que chegava em caminhões pipas. Fato esse, que fez os preços de todos os itens, principalmente, os de primeira necessidade subirem absurdamente de preços. Os demais se viravam como podiam, passavam sede e nem tomavam mais banho. Tinham de buscar com baldes a pouca água que as autoridades disponibilizavam e, mesmo assim, era racionada – dois baldes de água por pessoa. E como havia algumas pessoas que tentavam burlar o racionamento, retornando às filas, as autoridades colocaram adesivos nos baldes e marcavam cada reposição. Uma comissão de controle da água teve de ser montada às pressas. Enquanto isso, pequenas indústrias foram fechadas e pequenas lavouras abandonadas. Não havia o que fazer, sem água. Numa tentativa desesperada, poços artesianos foram abertos, alguns com pouca água, outros com água turva e outros esvaziaram em poucos dias.


Quando cinco meses haviam passado e a chuva ainda não dava mostras de cair do céu. Os rios estavam secos, e as nascentes reduzidas a fios de água. Tudo estava seco, as florestas sem vida, o verde tornara-se ocre. As autoridades, os meteorologistas, as distribuidoras, os grandes empresários e os altos agricultores reuniram-se para buscar alguma alternativa. O fato era que a falta de chuva, gerara a falta de água e todos dependiam da água para sobreviver. A falta de chuva rareava os rios que forneciam água para todos, e consequentemente, faltava forças às hidrelétricas para produzirem luz. Sem água não havia lavoura e, portanto, não havia comida, e a pouca que tinha tornara-se muito cara. A indústria não conseguia produzir, pois 90% de tudo dependia de água, seja no início, no meio ou no final do processo de industrialização. Ao final da reunião concluíram simplesmente que precisava chover e urgentemente. A tristeza começara a fazer parte dos dias de Daiane que já sentia falta da chuva e da umidade.


Em seis meses sem chuva, os hospitais já não davam conta da quantidade de pessoas desnutridas e desidratadas, sem contar o grande número de óbitos. Pois nesse momento não havia mais água em lugar algum. As tentativas de dessanilizar a água do mar até serviram para algumas coisas, mas ainda era imprópria para o consumo humano, e quando usada na agricultura matava vários dos itens cultivados. Enquanto isso a economia ruía, as pessoas desesperavam e a vida estava secando gradativamente. Houve quem tentasse reagir com violência ou justificasse sua grande fortuna e por isso, teria mais direitos. Mas a grande maioria estava comovida, e algumas já não consideravam as diferenças de classes econômicas, o caos pela falta de água era geral. Afinal, todos estavam sofrendo com a falta d’água. Nesse momento Daiane deu-se conta do desejo que tivera tempos atrás e arrependera-se. Sua vida havia mudado radicalmente, então percebeu que a vida de todos também estava desabando. Olhou a sua volta e deu-se conta que tudo estava amarelado, poeirento, mas o céu permanecia de brigadeiro, com o sol brilhando.


Nesse momento Daiane refletiu e conseguiu ter noção do todo. Admitiu para si mesma que a chuva teria de voltar a cair. Desejou que chovesse, para que a vida pudesse ser retomada, para que as pessoas pudessem sobreviver. Chegou a lembrar da umidade, a saudade de ter um guarda-chuva debaixo do braço e do barulhinho de pingos d’água, bem como, o cheiro de terra molhada. Desejou com toda a sua força que houvesse novamente água para todos, comida para todos e esperança no futuro. Deu-se conta que todos necessitavam da água que vinha da chuva, para que os rios voltassem a ter água e para que as nascentes voltassem a verter água límpida, e assim, o mundo sobrevivesse à seca. No dia seguinte começou a chover, e em uma semana chovera o suficiente para que uma parte da vida pudesse ser retomada. Os meteorologistas estavam otimistas, as autoridades contentes, a indústria e o agronegócio retomavam as atividades gradativamente. As previsões davam mostras de que o tempo estava mudando, e que se chovesse mais alguns dias a maioria das atividades poderiam ser retomadas.


Durante esses dias chuvosos, Daiane saia à rua todos os dias, tomava banho de chuva, e compartilhava sua alegria com os demais. Juntou-se a algumas crianças para pularem numa poça d’água e ria alto pela maravilha que era a água da chuva. A vida estava voltando ao normal.

 

Juliane Sperotto é especialista em Literatura Brasileira  pela UFRGS; graduada em Literatura e Língua Portuguesa  pela UNISINOS; escritora e uma das fundadoras e idealizadoras da revista Escape. Atualmente responde pela revisão ortográfica da revista e é uma das editoras associadas.

A revisão ortográfica deste texto é de total responsabilidade do seu autor ou assinante da postagem publicada. A revista Escape só responde pela revisão ortográfica das matérias, editoriais e notícias assinadas por ela.







Confira este conto na nossa publicação online Caderno Escape #02

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